terça-feira, 9 de outubro de 2012

Crónica do Condestável de Portugal, Nuno Álvares Perira. Mendes dos Remédios. «Tal era a fina flor da cavalaria interpretada pelos seus mais distintos representantes! É também digno de nota o seu procedimento para com as mulheres, os oprimidos e os fracos, a sua magnanimidade para com os inimigos, a sua generosidade para com os adversários»

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«A morte de sua esposa fechou o ciclo da sua aventura material. Por mais que o seu nome, o seu destino, a sua situação única e privilegiada parecessem encaminhá-lo noutra direcção, não mais Nuno Alvarez consentiu em submeter-se ao que lhe apontavam como uma condição de glória.
Não foi possível convencê-lo de um segundo matrimónio. E mais tratava-se ainda de uma nobre donzela, Beatriz de Castro, filha do conde Álvaro Pirez de Castro, conhecida também pela sua formosura. Nuno Álvaro fugiu de Braga, não vendo outra forma de evitar as pressões que de todos os lados se moviam e no receio de, como lhe sucedera da primeira vez, lutar…. Para vir a ceder, ou então, como era seu desejo, vencer, mas à custa do descontentamento dos seus amigos, do rei e da rainha, que também se achavam em Braga, de todos, enfim, que gravitavam em volta dele, e nele viam já um homem superior ao seu meio e ao seu tempo. Parece-me que deixo em Braga a nuvem que me pesava sobre o coração! Dizia aos companheiros da viajem, já a caminho das terras de entre Tejo e Odiana.
Entretanto Nuno Alvarez não era um coração fechado aos sentimentos da benevolência, da doçura e da mansidão. Nem uma só vez a sua linha de perfeito cavaleiro, generoso e magnânimo, obliqua para a crueldade. Sabe-se como na Idade Média eram considerados os delitos cometidos contra a religião ou os lugares e objectos sagrados. O sacrilégio assumia as proporções dum facto delituoso sui generis, para que era difícil obter absolvição.
Achava-se um dia num lugar de Castela quando lhe vieram dizer que um escudeiro da sua hoste, Gonçalo Gil de Veiros, roubara duma igreja um cálix. Preso, justiçado, sentenciado, o Condestável ordenou que ele fosse queimado. Acudiram pressurosos em favor do miserável os capitães e cavaleiros. O Condestável cedeu por fim, parecendo contrariado somente para melhor manifestar o seu desgosto e convertendo a pena na proibição de que esse soldado de futuro pudesse fazer parte e combater incorporado na sua vanguarda!
Tal era a fina flor da cavalaria interpretada pelos seus mais distintos representantes!
É também digno de nota o seu procedimento para com as mulheres, os oprimidos e os fracos, a sua magnanimidade para com os inimigos, a sua generosidade para com os adversários. Preparava-se-lhe um dia uma emboscada, onde o prendessem e acabassem. Era em Coimbra. Uma condessa, mulher do conde Henrique Manoel, lembrara-se de vingar o marido, que, quando governador de Sintra, o Condestável derrotara. Juntando parentes e amigos, assoldadando homens de guerra, ela pretendia apossar-se de Nuno Alvarez e da sua gente, preparando tudo secretamente.
Mas os soldados do Condestável souberam-no e, conquanto poucos em numero, logo resolveram o assalto aos paços da condessa, fazendo-lhe pagar caro a insidiosa emboscada. Nuno Alvarez soube-o à última hora, e logo correu a prevenir a violência dos seus, quebrando com esta generosidade a hipocrisia da violência, que lhe preparavam.
Doutra vez tratava-se do assalto a um dos castelos mais fortes que se conhecia, o qual estava pelo lado de Castela. Nada fazia recuar os homens de armas que militavam sob as ordens do Condestável.
A bravura do chefe comunicava-se-lhes. Já se julgavam invencíveis como participantes da excepção, que o cobria a ele. Assim, quando, desta vez, acometeram o castelo de Neiva, Nuno Alvarez não o sabia. Participando-lho, chegou tão asinha como pôde, e como quer que o alcaide fosse morto dum golpe que lhe abriu o bacinete, o castelo rendeu-se. Temendo desacatos à sua pessoa, a mulher do alcaide veio então ter com o Condestável pedindo ‘que lhe mandasse guardar sua honra’. No dia seguinte alguns escudeiros e homens de pé conduziam-na com toda a segurança e respeito a seu pai, inimigo de Portugal e portanto de Nuno Alvarez, pois estava em Ponte de Lima, que sustentava por el-rei de Castela.
E não lemos nós aquele tocante episódio demonstrativo da sua muita bondade natural, acontecido com um cego…? Nuno Alvarez vinha a caminho de Coimbra, tendo partido de Torres Vedras com todos os seus homens e a população do burgo, que, com medo das represálias dos castelhanos, se abalou em massa atrás das hostes do Condestável. Torres Vedras estava pelos espanhóis e tornando-se improfícua uma tentativa de assalto por meio de mina o Condestável resolveu-se a sair para Coimbra, onde iam celebrar-se as cortes para a aclamação de João I. Na abalada ouviu-se então, por entre o vozear dos que partiam, os gritos dum pobre cego rogando que o não deixassem ali. Nuno Alvarez mandou-o subir para as ancas da sua mula e ambos de dois seguiram assim durante umas quatro léguas, até onde o cego julgou bem de ficar». In Mendes dos Remédios, Chronica do Condestabre de Portugal Dom Nuno Alvarez Pereira, Lymen, França Amado, Subsídios para o estudo da História da Literatura Portuguesa, XIV, Coimbra, 1911.

Cortesia Lymen/JDACT