Conforme o original
O prior do Hospital
«D'isto veiu a
instituição dos monges militares; e neste sentido, o prior do Hospital era um
homem typo do seu tempo. Era-o também, como astrólogo, porque a astrologia,
exprimindo as ambições do espirito secular, surge como a alvorada do pensamento
scientifico desabrochado na Renascença. Era-o, finalmente, na carnalidade
dissoluta dos seus costumes, geral a uma época libertina, particularmente na
Hespanha, onde o exemplo da polygamia musulmana mais concorria para obscurecer o
instincto casto do povo aryano.
Da Edade-média,
germinando n'estes elementos sociaes e moraes, brotou a flor extravagante da
Cavallaria, idéa incoherente e superiormente bella, em que as contradicções do
pensamento contemporâneo e a noção cahotica da vida e do mundo apparecem
sublimadas, aspirando para um ideal indefinido, subindo para as nuvens, como as
agulhas dos templos, braços erguidos, de
mãos postas, para o céo. O valor e o milagre, o heroe e a protecção de um Deus sempre
activo, o destino sacrosanto da vida votada ao resgate do tumulo do Redemptor,
a definição paradoxal do heroismo pela abnegação e sacrifício, a castidade e a
pobreza no império desbragado da luxuria e da cubiça: uma como que volta dos
sentimentos moraes constitucionaes do tempo, contra a realidade, exagerando a
vida activa para a negar absolutamente, extrahindo do naturalismo espontâneo dos
costumes um idealismo phantastico: eis ahi o que foi a Cavallaria, que
apparece, ao terminar da Edade-média, como flor da poesia, sempre nihilista.
Foi assim também que do
herdeiro de Rodrigo Gonsalves, o heroe bravio da tragedia de Lanhoso, do
turbulento bispo Gonçalo, e do prior, pae de trinta e dois filhos,
nasceu Nun'alvares. Trazia hereditariamente comsigo todos os elementos que
geraram a Cavallaria, e por isso a flor incoherente da Edade-média appareceu humanizada
no bastardo de fr. Álvaro. Os homens superiores são sempre symbolos: nem a
superioridade está n'outra coisa. O homem é maior, ou menor, conforme a porção
de humanidade que lhe corre na alma. E para que a este caracter typico de
Nun'alvares não faltasse um único traço, veiu também ao mundo por bastardia.
Porque será que o instincto agudo se compraz na antithese, sublimando quasi
sempre a negação da ordem? Será a adivinhação de que essa ordem é apenas
abstracta, e um ente de razão, visceralmente opposto á anarchia real das coisas?
Tudo, pois, fadava
Nun'alvares para heroe da Cavallaria nacional; e a iniciação que o pae e o seu
astrólogo pedagogo, mestre Thomaz, lhe deram nos livros da época, definiu, logo
desde a infância, o caracter predestinado do futuro condestavel de João I.
- ‘Havia grão sabor e usava muito de ouvir e ler livros de historias, especialmente usava mais ler a historia de Galaaz, em que se contem a somma da Tavola Redonda’.
Pela primeira vez surgia
em Portugal um homem formado pela educação litteraria, mas este género, que
posteriormente foi até á cópia servil, iniciava-se de um modo ainda espontâneo.
Com o crescer dos annos, Nun'alvares ia creando em si uma natureza nova, assimilando,
sem o sentir, a alma phantastica de Galaaz: n'uma confusão de realidade e
fabula, num mixto de pureza e extravagância, como tudo quanto o rodeava e lhe constituía
o ambiente phantasmagorico da vida. Essas primeiras impressões cunharam-se-lhe
de um modo indelével no espirito infantilmente plástico; e nem de longe sonhava
que o facto de se confundir a si com Galaaz, irmãos na bastardia: o facto de
ambicionar gloria igual, e ir fantasiando uma existência semelhante de
sacrifícios e aventuras: o facto de se estar formando, assim, por educação litteraria,
em vez de obedecer espontaneamente á lei da natureza, era o signal certo de que
os velhos tempos acabavam com elle.
Surgia, com effeito, uma éra nova para o mundo,
para Portugal. Nun'alvares, sem duvida alguma, foi o nosso Messias. Remiu-nos a
um tempo do peccado antigo da inconsciência, definindo claramente o destino
piedoso e heróico da vida, sobre o passado de inconsciência bravia. Remiu
Portugal do captiveiro castelhano imminente, abstraindo a nação dos limbos
obscuros da politica pessoal dos reis, para a assentar sobre os alicerces
firmes da vontade popular; acclamando-a n'um voto de acção heróica, e
deixando-a, de pé e armada, prompta para a conquista do seu logar épico na
historia da civilisaçao moderna. Mal pensava em creança Nun"alvares, ao
ouvir a historia de Galaaz, cujo ‘corpo bem talhado e contenente manso’ era
também como o d'elle próprio, que tal seria a sua demanda do Santo-Sepulchro e
do Graal de José de Arimathea! As phantasmagorias que lhe enchiam de assombro
educativo a imaginação infantil haviam de tornar-se, porém, em realidades gloriosas.
Seria o Galaaz portuguez: não um typo de phantasia, mas sim um homem, com a
idéa, porém, doidamente arrebatada pelo mysticismo cavalleiroso. Seria o precursor
das gerações alumiadas pelo claro pensamento que na sua infância, e n'esse
signo fatídico traçado á sua vida pela phantasia de um poema, desabrochava com
todo o viço e toda a frescura espontânea de uma alma virgem, temperada no aço
do heroísmo, coroada com assucenas de piedade mystica. A poesia foi, será
sempre, iniciadora e medianeira. Por mão d'ella sahia, primeiramente, o
pensamento, das névoas da inconsciência espontânea e natural, para o reino
claro da razão reflexiva». In Oliveira Martins, A Vida de Nun'Alvares, História
do estabelecimento da dinastia de Avis, Livraria de António Maria Pereira,
Editor, 1893, Makew Parr Collection/Magellan and the Age of Discovery/Presented
to Brandies University, 1961.
Cortesia de Livraria António Pereira/JDACT