terça-feira, 9 de outubro de 2012

A Morte da Águia. Poema Heróico. Jaime Cortesão. «De tão alto, sublime, etéreo assento, com que arrebatamento o olhar agudo se estendia ao largo: píncaros, vales, azulados, montes… Líquidos horizontes… O volutuoso abraço do Mar-largo…!»



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Canto I
O Despertar de um Deus
Nasceu a Águia na Montanha.
O ninho foi hórrida brenha
numa caverna exposta aos ventos,
 - Hirta e petrificada boca,
por onde uma Sibila de voz rouca
prediz ao Mundo os novos sofrimentos.

Átrio do Céu, assenta numa rocha,
que arranca da Montanha e desabrocha
como uma flor em plena imensidade;
do pétreo cálix, das entranhas virgens,
sai um perfume tal, que dá vertigens,
que a flor tem por aroma a Tempestade.

Nicho de catedral, abandonado,
 penhascoso baldaquino armado,
sem que um pobre santinho ali se acoite;
ou donde foge algum ligeiro santo
tentado pelo Céu, e voa tanto
que só recolhe lá por alta noite.

Átrio do Céu, p’ra que entre e saia o Dia;
é lá que a Aurora se atavia
para mostrar ao Mundo o claro rosto;
átrio do Azul que a Madrugada escolhe,
também ali se acolhe
o derradeiro raio do Sol-posto.

De tão alto, sublime, etéreo assento,
com que arrebatamento
o olhar agudo se estendia ao largo:
píncaros, vales, azulados, montes…
Líquidos horizontes…
O volutuoso abraço do Mar-largo…!

Mal a Águia nasceu,
fitou logo a Montanha, o Mar e o Ceu:
primeiro olhar, e de tal modo intenso
que nunca o seu profundo coração
sentiu Desejo, Dor, ou Comoção,
que envergonhasse aquele espaço imenso.

Olhar d’um deus que acorda
de triste e humano sonho, e que recorda
a sua gloriosa, eterna Vida,
e ao ver sua divina Criação,
dentro de si reune a comoção
de toda a imensidade comovida.

Abismos, onde as cataratas soam,
vales e montes. Mar, nuvens que voam,
ninguém vosso desejo imenso acalma;
nenhum de vós, erguendo a mesma prece,
a si mesmo ou aos outros se conhece:
só os deuses entendem a voss’alma.

Águia divina, que entendeste o Mundo,
tu viste como o Céu era profundo
e o Mar inesgotável,
que tudo é Vida e toda a vida é Luta,
e, que arrancando a cada coisa viva
Sua virtude e espírito indomável,

Em ti retiniste as forças mais estranhas,
tal a firmeza duma rocha bruta,
a vontade tenaz d'arvore altiva,
o arranco vitorioso das montanhas
e o ímpeto dum rio ou dum vulcão.

Ah! Quando o abismo mais era insondável,
mais teu Desejo tinha de aflição,
te erguia o voo, te crispava a garra
num supremo transporte;
como um navio que ao soltar da amarra
toma o rumo da Morte,
vira a robusta proa á imensidade
e larga toda a vela á Tempestade,
a quantos ventos há do Sul ao Norte,
para que ao menos roto, espedaçado,
algum destroço, inda animado
daquele anseio etéreo,
vá sobre as águas a boiar,
e enfim possa aportar
Às praias do Oceano do Mistério!

In Jaime Cortesão, A Morte da Águia, Poema Heróico, Livraria Editora Guimarães, Lisboa, 1910, The Library of the University of California los Angeles, PQ 9261, C8196M8, 2007

Cortesia de Editora Guimarães/JDACT