sábado, 27 de outubro de 2012

Gente do Metro. Júlio Conrado. «Olha que menino, o Governo e a sua corte de bisbilhoteiras amestradas a negligenciar pecados tão transparentes como os meus. Apostámos, admito, na mesma jogada. Fazer sair Nora de Lisboa…»

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O Adido Cultural
«Devo a Josette largos minutos de bem-estar: talvez pudesse prolongá-los. Prefiro, contudo, retirar-me enquanto dorme. Está notoriamente exausta. Fui, decerto, esta noite, o último dos seus clientes. Que devem ser bastantes, a avaliar pelas estatísticas do que ganha; forneceu-mas enquanto trabalhava.
Repousa de borco, o rosto sobre o lado esquerdo, as narinas flectindo a um leve ressonar. Rosto jovem, testa alta, cabelo preto e denso. Ao corpo, tapa-o parcialmente o lençol branco sujo, deixando de fora um dos belos joelhos, trigueiro, dobrado, a exaltar o redondo. De arregalar o olho a qualquer amador de poses.
Gostaria de abandonar o hotel-bordel sem que ela desse por isso. Prendo algumas notas sob a base do candeeiro, cuja lâmpada não chegou a ser apagada. Visto-me e calço-me precipitadamente, tolhe-me um nervosismo idiota. Que adido cultural não se sentiria um homenzinho verdadeiramente menor, ao ser caçado pela brigada mundana numa das mal-afamadas hospedarias parisienses? Só de admitir a hipótese cai-me o sapato, desalinho os botões da camisa, ao metê-los nas casas, e os da braguilha nem se fala.
Pergunto-me por que estou aqui, por que vim aqui. Nora bateu em retirada sem dizer água vai? E depois? Nunca ignorei que trocava correspondência regular com o seu antigo amante de Lisboa. Mas daí a partir… Na verdade, não estou em mim. Recorri ao álcool e a Josette, que substituem o psiquiatra com vantagem e por um preço relativamente módico. Josette disse-me em francês da província: nenhuma mulher vale uma lágrima. Na altura, achei bonito. Depois pensei que a deveria ter aconselhado a adornar com poucas palavras o seu comércio. Que melhor faria se aperfeiçoasse as magias do corpo. As palavras só encrencam.
O casaco, de xadrez, os sapatos de polimento, a camisa, a gravata com o nó a esconder-se, debaixo do colarinho, chegada ao lado direito, ah, o chapéu e os óculos escuros, estão mais ou menos, finalmente, em su sitio. Vejo, no espelho, um tipo envelhecido, acabado. Vejo, por cima do ombro, o rabo de Josette. Vejo Nora, sempre.
Passo, pé ante pé, em frente da gaiola de vidro onde o concierge afunda a cabeça num jornal desportivo. Le Regent se chama o hotel, cuja porta principal acabo de transpor. Um quartier latin sonâmbulo espera-me às duas da madrugada.
Cai a paciente geada de Outubro. Subo a gola do casaco, ajeito os óculos. Sou o adido cultural a abater ao efectivo. O Governo não gosta de mal-casados à testa de lugares de responsabilidade. Que dirão o embaixador e sua mulher?
É. O Governo estava tão ansioso por nomear para o cargo um homem de Letras que, ao primeiro poeta disponível que lhe apareceu, chamou-lhe um figo. Terá fechado os olhos a coisas decerto do seu conhecimento. Olha que menino, o Governo (e a sua corte de bisbilhoteiras amestradas) a negligenciar pecados tão transparentes como os meus. Apostámos, admito, na mesma jogada: fazer sair Nora de Lisboa. Foi projecto comum, meu e do Governo, levá-la a preencher o tempo todo com as recepções, os contactos, os espectáculos, abrindo-lhe os salões da diplomacia cultural snob e ajudando-a a esquecer aquele que, contrariando da forma mais grosseira elementares orientações bíblicas, fruía, à descarada, os favores da mulher do próximo. Do ponto de vista do Governo, era preciso a todo o custo colocar um poeta em Paris, mas o único livre tinha uma vida conjugal desgraçada, longe da imagem moralona do país missionário. Enfim, pesados os prós e os contras, o Governo resolvera arriscar. Que melhor cidade para julgar com indulgência vidas com defeito?
Nora, porém, iludiu as expectativas postas na mudança. Entrou a definhar, a consumir-se, até ficar pele e osso. As saudades de certa cama de Lisboa atormentavam-na acima do que podia suportar, penso eu. Raramente me acompanhava e a senhora embaixatriz não perdia a mínima oportunidade para fazer reparos um pouco vexatórios a respeito de razões de estado e inerentes obrigações protocolares. Borrifo-me no protocolo. Mas estou à rasca. Amo Nora, caraças. E agora?» In Júlio Conrado, Gente do Metro, Vega, Lisboa, Colecção O Chão da Palavra, ficção, Prémio literário cidade do Montijo, 1988.

Cortesia de Vega/JDACT