«La Garçonne, o polémico romance de Victor Margueritte, teve uma tradução
brasileira em 1923, mas em 1927 é apresentado, adaptado ao teatro no Trindade.
Na notícia que do acontecimento se fez refere-se o ‘escandaloso romance’ de
Victor Margueritte. A estoria, do romance e da peça, não é especialmente
escandalosa. Monica Lerbier, interpretada no palco por Lucília Simões, o protótipo
da rapariga moderna, abandona a família entregando-se à droga, opio e cocaína;
no final, acaba por se regenerar pelo amor sério de um homem. Se La Garçonne de Margueritte não se
difundiu no nosso país por via literária tendo em conta a tradução brasileira,
teve de certeza repercussões em Lisboa, por via teatral. Henri Ardel, nome bem
conhecido em finais dos anos 10 e ao longo dos anos 20, católico moralizante,
constava das bibliotecas das senhoras.
Em O Amor tem duas Caras,
drama pós romântico, onde se defrontam duas mulheres, a mensagem moralista é
dominante. O padrão da mulher bonita, estouvada, desejada pelo sexo oposto,
atraída pela perdição máxima dos anos 20, o universo do cinema, opõe-se ao
padrão da mulher séria, corajosa, não tão bonita nem tão apreciada pelos
homens. Num drama em jeito de tragedia a heroína boa morre ao salvar uma
criança e a má expiará até ao fim da vida a culpabilização desse acto.
O papel da mulher nos romances estrangeiros de maior divulgação em
Portugal e junto da população feminina alfabetizada é sempre enaltecido como
fada do lar, amante fidelíssima, esposa exemplar. A contraposição a esta imagem
encontra-se na mulher, geralmente jovem, que se expõe aos riscos de uma vida
não integrada na família, ou por querer trabalhar fora de casa, ou por ser
artista, e essa condição é dificilmente aceite para uma mentalidade mais
conservadora.
Também é frequente surgir a figura da irmã solteira que vela pelo bem
estar da família. Um outro protótipo é o da mulher independente e masculinizada
que invariavelmente é infeliz por ter tomado essa opção na vida. Neste romance,
a emancipada e sem dúvida uma mulher triste, ama um homem casado, lê volumes de
psicologia e interessa-se pela representação de La Garçonne no Odéon de Paris.
Outro traço particular da mulher emancipada e a cultura. Nelinha Sampaio,
personagem de Memorias Duma Mulher da Época
de Diana de Liz, traduz Ibsen e sabe distinguir Van Dick de Botticelli. Maria
Moniz, outra personagem, cita com grande facilidade um certo número de autores.
A erudita não é vista com bons olhos, E mesmo ridicularizada. Como em O Baile dos Bastinhos de Armando
Ferreira da série Lisboa Sem Camisa
embora já publicado em 1935. Por um lado fala-se da influência nítida do
cinema. Compravam-se retratos de Ramon Novarro e charutos de Monterrey. A Fifi
e a Loló copiavam os costumes franceses e deixavam-se seduzir pelo estilo dos
actores norte-americanos.
Estava-se em finais dos anos 20. O Moisés principiava a embirrar com a
quantidade de gente que a Fifi agora conhecia. Era o Douglas, o Clive, o Boyer,
e ainda por cima conhecendo-lhes as intimidades, a cor das gravatas, a marca
dos cigarros, o dia do nascimento...
Colette era a autora favorita das donzelas. Lia-se La Retraite Sentimentale no original. Se no
cinema se preferia o de origem norte-americana, o francês não deixava de se
destacar. Il est charmant, era o
título de um grande êxito da época, em 1922.
La Garçonne vai configurar um
modelo feminino. Por exemplo, em O Amor à
Parisiense de Clément Vautel surge-nos a ‘menina’ emancipada que sai
amiudadamente à noite, o que era criticável do ponto de vista moral, e que
usava ‘o cabelo à Joãozinho, os braços ao léu, decote por cima e por baixo’. A
expressão ‘à Joãozinho’ que teve
longa vida é de certo modo a tradução de ‘à
garçonne’». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da
Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade &
Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.
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