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E a Guerra aqui tão perto
«Em Janeiro de 1944, já a guerra contava quatro anos, uma sociedade de
abastecedores de leite veio ao encontro das aspirações da população, deliberando
que as bilhas de leite chegariam às leitarias de Lisboa devidamente seladas,
depois de um condigno processo de higienização e filtração. Assim, escrevia o Diário de Lisboa em Março de 1944,
terminaria a ‘mixórdia, o desolador aspecto da sua transvasão na via pública e
as bilhas seladas garantiam, enfim, ao público lisboeta que, em lugar duma
mistela adulterada, verdadeiro caldo de cultura microbiana, se ia, finalmente,
beber leite’. Mas outros valores mais baixos se levantaram. Como verificava o
mesmo Diário de Lisboa, ‘foram em vão
as nossas legítimas esperanças. O leite continua adulterado, pois todos os dias
o Tribunal condena leiteiros por falsificação do produto. O leite também
continua infecto, sujo e perigoso, visto que a sua transvasão na via pública
não cessou’.
NOTA: Um número do Notícias
Agrícolas, publicado, justamente, em Março de 1944, elucidava sobre a forma
como era tratado o leite que Lisboa bebia durante os anos da Guerra. Vacas mal
instaladas, instaladas em estábulos infectos, mugidas por vaqueiros andrajosos
e porcalhões; leites recolhidos e guardados em cerrados contaminados, mantidos,
qual caldo de cultura microbiana, em meio eminentemente favorável à desenfreada
multiplicação microbiana, transportados para Lisboa sem os mínimos resguardos,
baldeado na via pública poeirenta, ao mesmo tempo que os outros serviços
municipais (que também se chamam de Higiene) fazem despejar os lixos da cidade:
leites que, por motivo de economia, só são transportados até Lisboa uma vez por
dia, forçando-se assim a um amadurecimento
mínimo de doze horas sem prévio arrefecimento, leites tratados com esta
falta de escrúpulo científico nunca poderão chamar-se higienizados. Os saudosos dessa instituição que eram os leiteiros
lisboetas esquecem quase sempre estes pormenores menos agradáveis.
Por incrível que pareça, escreveu o Diário
de Lisboa na sua edição de 21 de Fevereiro de 1944, tem-se verificado,
apesar da intensificação da respectiva fiscalização e das rigorosas penalidades
aplicadas pelo Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios, que o número de
infractores é cada vez maior.
A situação era tal que os jornais propunham soluções. O Diário de Lisboa, nesta mesma edição,
escrevia:
- ‘Mas como arranjar os fundos necessários para a construção da Central Leiteira? Independentemente das verbas que o Estado e a Câmara pudessem destinar-lhe, há uma que é legítimo e compreensível que nela seja empregada: a proveniente das multas aplicadas por falsificações de leite, que, só no ano passado, renderam mais de 3 000 contos’.
O pão era objecto do mesmo tipo de atentados. A 28 de Janeiro de 1944, por
exemplo, subiu ao Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios um caso de falsificação
do pão, em que era arguida a padaria Celeste, de Lisboa. Acusado de fazer
introduzir no pão farinhas de qualidade inferior, o proprietário do estabelecimento
declarou que a falsificação era da exclusiva responsabilidade do amassador e do
caixeiro. Mas este não tardou em declarar que ouvira ao proprietário esta lamentação:
- A casa dá pouco rendimento e as concorrentes rendem mais -. Daí à ludibriação
do pobre cliente foi um passo.
Outros comerciantes tomaram, por sua vez, a iniciativa de desenvolver
acções de racionamento antes do Ministério da Economia as decretar. A situação
atinge uma tal gravidade que os leitores do Diário
de Lisboa chegarão a propor a aplicação da pena de trabalhos forçados para
os chamados mixordeiros.
No mesmo dia, 15 de Janeiro de 1942, dois jornais de grande circulação,
O Século e o Diário de Lisboa, debruçavam-se sobre tais problemas. O Diário de Lisboa dessa mesma tarde
publicaria, em editorial, estas palavras:
- ‘As cobiças não vacilam, porque são insaciáveis e multiplicam-se com a tolerância e a cumplicidade dos compadres. Ganhar, ganhar muito, embora o consumidor fique à míngua, eis o que convém às espécies açambarcadoras e roedoras. Valha-nos, Sr. Ministro da Economia! Por que não se vende carne nos talhos? Quem se encarrega de a arredar de Lisboa, como se fosse artigo de contrabando? Para os grandes males, grandes remédios. Para os inimigos do povo, a justiça e o castigo (...) A alimentação pública, em ocasião como a presente, é um problema sério que não se presta, portanto, a habilidades lucrativas nem a torpores inertes. Torna-se, porém, complicada, assoberbante e fatigante, quando se intrometem nela mãos industriosas. A pasta da Economia tem uma esmagadora missão a cumprir, visto que sobre ela impende uma tripla função, cada vez mais difícil, abastecer, distribuir e evitar que os milhafres comam o pão e a carne, à maneira dos corvos que baixam sobre os cadáveres abandonados. Se a guerra nos poupa, por que não havemos de conservar a nossa casa em ordem, cada qual trabalhando, de modo que o quinhão de sofrimento que nos cabe não seja avolumado com apetites de chacal?...’
In Maria João Martins, O Paraíso Triste, O Quotidiano em Lisboa durante
a II Guerra Mundial, Vega, Colecção Memória de Lisboa, 1994, ISBN
972-699-474-8.
Cortesia de Vega/JDACT