quarta-feira, 3 de junho de 2015

Teorema. Pier Paolo Pasolini. «Ele caminha, de facto, com ar astuto e feliz, ao lado de uma lourinha, claramente da mesma classe e da mesma tradição social que a sua, que é, sem dúvida, presentemente, a sua namorada»

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Dados
«(…) Tocam os sinos do meio-dia. Pietro, a segunda personagem da nossa história, filho da primeira, sai pelo portão do liceu Parini. (Ou talvez já tenha saído, e esteia já de regresso a casa, pelas ruas de todos os dias.) Também ele, à semelhança do pai, tem na testa pouco alta (aliás, quase acanhada), aluz da inteligência de quem não viveu inutilmente uma adolescência numa família milanesa abastada; mas, muito mais visivelmente que o pai, padeceu por isso: a um ponto tal que, em vez de resultar daí um rapaz seguro de si, e talvez como o pai, desportista, tornou-se num rapaz débil, com a pequena testa violácea, os olhos já, acobardados pela hipocrisia, a melena ainda um pouco rebelde, mas apagada por um futuro de burguês destinado a não lutar. No conjunto, Pietro faz lembrar algumas personagens cinematográficas dos velhos filmes mudos, poderíamos até dizer, misteriosa e irresistivelmente, Charlot: sem qualquer razão, para dizer a verdade. Porém, não se pode deixar de pensar, ao vê-lo, que está destinado, como Charlot, a vestir grandes sobretudos e casacos que lhe ficam demasiado grandes, com as mangas que pendem meio metro abaixo da mão, ou a correr atrás de um eléctrico que nunca apanhará, ou a escorregar com dignidade numa casca de banana num qualquer bairro da cidade, cinzento e tragicamente solitário.
Estas são, contudo, apenas considerações vivazes e improvisadas; o leitor não deverá deixar-se desviar por elas. Por enquanto, Pietro pode perfeitamente ser imaginado como um qualquer jovem milanês, estudante do Parini, reconhecido pelos seus companheiros, em tudo e por tudo, como um irmão, um cúmplice, um camarada, na sua inocente luta de classes, apenas iniciada e já tão segura. Ele caminha, de facto, com ar astuto e feliz, ao lado de uma lourinha, claramente da mesma classe e da mesma tradição social que a sua, que é, sem dúvida, presentemente, a sua namorada. Sobre isto não deverão existir equívocos: Pietro, regressando a casa pelos belos relvados de um jardim público milanês, tocados por um sol ardente (também ele uma impalpável possessão daqueles que têm a cidade), está sinceramente ocupado a cortejar a sua companheira de escola. Fá-lo, é verdade, como se seguisse um plano doloroso: mas isso é devido apenas à sua secreta e inconfessável excitação de rapaz tímido, disfarçada por um estado de espírito e um ar de certeza, do qual, aliás, mesmo querendo, não se poderia libertar. ' Os seus companheiros, todos impecavelmente vestidos, apesar de uma certa veleidade em quererem parecer um pouco vagabundos, com caras que, quer sejam enternecedoras ou antipáticas, estão marcadas pela precoce falta de qualquer desinteresse e de qualquer pureza, deixam para trás, cúmplices, o casal. Assim, Pietro e a sua namorada demoram-se junto a um arbusto, louro como se tivesse espigas, se for Outono, ternamente transparente, se for Primavera, brincando; depois sentam-se num banco de jardim afastado; abraçam-se, beijam-se; qualquer passagem de insuportáveis testemunhas (um paralítico, por exemplo, que passa sob o sol, isto é para ele nada mais que uma visão consoladora) interrompe-os precisamente nos seus gestos mais culpados (a mão dela perto do regaço dele, contudo, sem qualquer imposição): mas estão no seu direito; e a sua relação é, apesar de tudo, sincera, simpática e livre». In Pier Paolo Pasolini, Teorema, 1968, 1991, 1994, Quasi Edições, tradução de Ana Tanque, biblioteca Metamorfose, 2005, ISBN 989-552-105-7.

Cortesia de QuasiEdições/JDACT