sábado, 20 de junho de 2015

Um País Encantado. Luís Miguel Rocha. «Porque já tudo se sabe, não há penduricalho, é fêmea portanto, e Deus livre e guarde dona Margarida de uma sova imponente preparada com requinte, mas que importa isso se acaba de pôr os olhos na bebé mais bonita que alguma vez vira, que vale uma ou mais sovas das mais imponentes…»

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O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In Jean.Paul Sartre

«(…) Os gemidos da parida ecoam na casa inteira, mas deles não se fez menção no corredor, quando, se bem lembrados, o conde caminhava em direcção ao salão, é que os gemidos femininos enrodilham-se com os de prazer, mesmo que carreguem dor, não se quereria com certeza enoitecer dona Margarida com cogitações depravadas como as que teve o conde e não se disse, porque conde é conde e tem licença de pensar o que quer, sua mente é elevada, não fosse ela nobre e de azul, no sangue e nunca ninguém o arguiria de ser porco, apenas de ser homem. Esta que aqui vemos é Conceição Genoveva a caminhar no corredor, uma das serviçais do solar, nas mãos carrega uma bacia de água quente denunciada pelo vapor e nos ombros umas quantas toalhas, acessórios de grande necessidade para a parida, sigamos a coitada da Conceição Genoveva, sempre dedicada às causas do trabalho, às causas da casa e nesta hora de grande causa que não se delongue em chegar ao quarto de dona Margarida que já a aguardam em grande desassossego, não fossem todos os partos uma invariabilidade de probabilidades e consequências provocadas por actos, por vezes, também eles, inconsequentes o que não é o caso, não fosse o coronel José Silveira homem de grande responsabilidade e apreço pelo que de seu é, que há nove meses aguarda a consequência do seu acto consequente de gerar um filho varão, ele que com certeza o terá gerado porque para isso labutou, mas nunca se confie na jura, conjura, das mulheres que geram o que bem entendem e nada dizem a ninguém, prova disso sabe ele que por quatro vezes varão gerou e saiu mandriona, senão repare-se nos seus quatro rebentos que por ordem do mais antigo para o mais novo dão pelos nomes de Josefina, Matilde, Eva e Manuela filhos de dona Margarida que muito penou por causa dessas consequências, varão é o que se pede e se desta não vier será a quinta e derradeira oportunidade para redimir o seu erro e afronta ao coronel. Esta que aqui vemos é Conceição Genoveva que já chegou ao quarto de dona Margarida e que também sabe a aflição em que está a sua senhora, não conhecesse Conceição Genoveva o empenho com que o coronel combate as noites de insónia, não conhecesse ele as suas entranhas, ela que também deu uma mandriona ao seu Alfredo, o mordomo que abriu a porta ao conde, quando este pediu um varão, mas que importa se compreendeu muito melhor que o patrão que nem homem nem mulher têm mão nisso.
Dona Margarida está deitada no centro da cama suada, com as pernas abertas e a respiração irregular, um esgar de dor atravessa-lhe o rosto que mesmo nesta hora mantém uma beleza religiosa de urna mulher pudica e de bons princípios, que cedo acabe este martírio, pensa dona Margarida, qual deles, perguntamos nós, o grande e nobre martírio do parto, que torna todas as mulheres melhores do que qualquer homem, não fossem as mulheres mães de todos os homens ou o martírio das preces e rezas não terem sido ouvidas e não dar ao seu coronel, pela quinta vez o tão desejado filho varão, a si o que de seu é, o pensamento é de dona Margarida e com ela ficará. Inácia é a parteira de serviço, formada no ofício pela vida e pelos antepassados da família, raro é o parto na terra que não seja feito pela velha Inácia cuja idade não interessa para aqui e se ela não quer que se saiba assim será respeitada a sua vontade. Respire Margarida. Respire. Descanse um pouco. É tudo como das outras vezes, fala Inácia acalmando a paciente numa voz tema e amiga, se há coisa que nunca muda é a forma de ter os filhos e nada mais simples do que simples conselhos. Tenha calma minha senhora, conforta Conceição Genoveva, pousando a bacia de água escaldada e as toalhas junto à cama. Tudo vai correr bem.
Vamos lá mais uma vez, ordena Inácia posicionando-se junto à saída, no meio das pernas de dona Margarida. Força, vá, força. E força faz dona Margarida e mais detalhes não são precisos porque disso já muito se sabe ou não fôssemos todos filhos de uma mãe e pais somos ou seremos, dependendo da história de cada um, porque nisso cada um sabe de si e decide, a não ser nos actos inconsequentes que hoje também tem remédio. Avancemos até à saída onde já Inácia tem o rebento nas mãos, de cabeça para baixo, seguro pelas pernas, dá-lhe duas palmadas fortes no rabo e solta-se o choro do recém-nascido, são todos iguais quando nascem, são todos fêmea e macho pelo choro, e preciso olhar mais, em baixo, sabem bem onde, portanto olhem e mais não se diga Porque já tudo se sabe, não há penduricalho, é fêmea portanto, e Deus livre e guarde dona Margarida de uma sova imponente preparada com requinte, mas que importa isso se acaba de pôr os olhos na bebé mais bonita que alguma vez vira, que vale uma ou mais sovas das mais imponentes, que venha o coronel com o seu chicote ou com o seu cinto, que a prenda à cama e que lhe bata porque nada equivale o vislumbre de um ser como aquele, que emana uma aura de paz, tranquilidade e beleza e que é sua, só sua, saída de si, e que vale todas as horas de sofrimento e de asco no quarto com o coronel, nas suas intermináveis investidas sexuais onde repetia aos solavancos, suado e sujo, é para o macho, aqui vai macho, toma macho, e que ela recebia sabendo que seria o que Deus quisesse, mas que desejava que o fosse, no fundo do seu coração, para não ter de o ouvir, mas agora o mal está feito, da afronta já não se livra, nem do desrespeito a que, pela quinta vez, submete o coronel a submetê-la ao castigo, mas, pela terceira vez, nada disso importa, porque a pequena, com apenas alguns minutos de vida, vale tudo isso por razões que a ela e não só a ela dizem respeito e mais não se falará disso por agora». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.

Cortesia de Planeta Editora/JDACT