sábado, 20 de junho de 2015

D João II. As Sombras. Jorge S. Correia. «Os cativos foram muitos, cerca de cinco mil, entre eles duas mulheres e um filho do sultão que veio a dar muito jeito a Afonso V para permutar os ossos do tio Fernando, há mais de trinta anos pendurado na fortaleza da cidade de Fez»

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Sonho. Glória. Poder e Intriga.
«(…) Também o seu adestramento em matar bem de todas as maneiras lhe foi ministrado pelos mais experientes homens de armas, especialistas em degolar mouros na terra deles e porem-se a fugir sem serem apanhados. Ensinaram-lhe como devia pegar nas armas, o modo de manejá-las, de que forma pesavam menos e matavam mais. O príncipe devia conhecer também os diversos tipos de armamento: maças, punhais, espadas, lanças, bestas (não confundir com as cavalgaduras), arcabuzes e artilharia pesada, mais as indispensáveis manhas, muito úteis para quem tem de matar para não morrer. Cavalgar é preciso, e um príncipe sem se aguentar bem na sela é como um pião, rodopta, arrasta-se e assenta na terra, e, sendo assim, nada melhor do que começar por ler o livro que o seu avô Duarte escreveu: Livro de Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela, onde o segundo rei da segunda dinastia descreve, com experiência e saber próprios, a forma como um bom cavaleiro deve atacar o adversário e a postura que deve tomar quando a passo ou a trote deslumbra a assistência nos torneios e cerimónias sociais. Para que não faltasse nada na educação do príncipe, o rei seleccionou moços para crescerem com ele, dividirem ensinamentos e artimanhas, desde as mais frívolas brincadeiras às menos confessáveis. Este expediente viria a tornar-se muito útil no percurso de João, pois fomentou amizades e lealdades que perduraram depois por toda vida.
Caso arrumado. O príncipe iria matar mouros, fazer crescer Portugal à beira do Atlântico marroquino, e nem era necessário o pai estar com tantos receios, porque o jovem, protegido pela impenetrável armadura, só se caísse ao mar é que poderia ir ao fundo e afogar-se. Assim sendo, João deixou a esposa a crescer e foi na armada que iria assaltar Arzila. Em 15 de Agosto de 1471, a armada zarpou de Lisboa fazendo a viagem em cinco dias, todos muito quebrados e enjoados dos balanços dos navios quando chegaram defronte das muralhas da cidade. Desta vez Afonso V pôs todo o cuidado na táctica. Enviou à frente espiões para tirarem as medidas à cidade. Pero Alcáçova e Vicente Simões, disfarçados de negociantes, misturaram-se com a população para estudar a melhor forma de ludibriar os mouros: mediram as muralhas, o número de portas, aquelas que mais expostas estavam, as zonas da cidade onde o poder político e militar muçulmano se reunia, a melhor localização para desembarcar e atacar a cidade. Diante das muralhas, uma frota com mais de quatrocentos navios, entre caravelas, barcas, fustas, navetas, trazia dentro de si cerca de trinta mil combatentes. Como no reino não havia toda essa mão-de-obra especializada no manejo de armas, o rei viu-se na necessidade de gastar o ouro que já nessa altura vinha do Golfo da Guiné para contratar uma chusma de mercenários à procura do saque e da aventura.
Assim que chegaram, logo se viu que as dificuldades eram maiores do que aquelas que os dois espiões tinham relatado. A imprevisibilidade é um factor que deve ser sempre considerado, e, por isso, quando a armada começou a desembarcar, o mar agitado e as rochas que formavam pequenos estreitos diante da fortaleza fizeram das suas. Antes mesmo de pegarem fogo às bombardas, foram ao fundo mais de duzentos combatentes, entre estes, bons fidalgos, escudeiros e cavaleiros, sendo que a maior parte era gente de pé. Com tanta tralha em cima, era como se lhes pusessem pedregulhos nos pés. Mas não há como ter coragem. Diante de tais dificuldades, os que desembarcaram, e foram muitos, puseram logo os canhões a lançar bojardas sobre as muralhas, fazendo-lhes buracos tão largos como portas abertas para o interior da cidade. Estava na hora do tiro ao mouro. Os arremessos continuaram, com os artilheiros a abrir caminho para os espingardeiros e arqueiros fazerem a parte que lhes competia, desfechando as suas munições sobre os locatários. No dia 24 já o representante do alcaide propunha tréguas. Nem pensar, as súplicas não lhe valiam de nada. Nesse mesmo dia a cidade foi tomada pelo exército cristão, trinta mil homens valentes dispostos a perseguir e matar todo o mouro que gesticulasse. Afonso V por seu lado, fazia diante do filho demonstrações de valentia. Quando Álvaro Castro, conde de Monsanto, levou com um calhau em cima, a armadura encarquilhou tanto que não lhe valeu de nada ser corajoso. Um fidalgo de tanta firmeza, leal como poucos, morre-me aos pés, protestava o rei cheio de dó. Depois, dirigindo-se ao filho, incentivou-o. Vede, meu filho, como a coragem nem sempre é compensada. Mas é preciso prosseguir, mostrar aos hereges que não retrocedemos nem perdoamos aos que ofendem a nossa santa religião (?).
Entretanto espalhou-se a notícia de que havia na cidade oitenta mil dobras de ouro, o que acicatou ainda mais a soldadesca. Arrasavam casas, partiam objectos, paredes, revolviam arcas, matavam quem se opunha. Incentivados por Afonso V, um rei esbanjador, foi-lhes permitida a escala franca (todos os despojos de guerra são permitidos sem regras ao vencedor) e o soberano nem sequer reclamou o quinto que lhe pertencia por direito. O que ele não dispensava era a tomada de reféns. Quando os assaltantes chegaram ao Al-Ksar (designado como palácio fortificado com funções político/militares, podendo ser também castelo fortificado ou residência real) e à volta da mesquita, a luta foi sangrenta. Terão morrido cerca de dois mil combatentes mouros, tantos que o príncipe João, para provar ao pai como tinha participado na razia, mostrou-lhe a espada retorcida. Os cativos foram muitos, cerca de cinco mil, entre eles duas mulheres e um filho do sultão que veio a dar muito jeito a Afonso V para permutar os ossos do tio Fernando, há mais de trinta anos pendurado na fortaleza da cidade de Fez. O lado mais feliz da missão ocorreu quando o rei libertou cinquenta cativos portugueses, que tinham sido aprisionados anos antes, permitindo-lhes voltar ao reino, e se a oportunidade chegasse, regressar à luta para serem cativos outra vez ou mortos a pelejar». In Jorge Sousa Correia, As Sombras de D. João II, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-155-0.

Cortesia de C. do Autor/JDACT