Sonho. Glória. Poder e Intriga.
«(…) Também o seu adestramento em matar bem de todas as
maneiras lhe foi ministrado pelos mais experientes homens de armas,
especialistas em degolar mouros na terra deles e porem-se a fugir sem serem
apanhados. Ensinaram-lhe como devia pegar nas armas, o modo de manejá-las, de
que forma pesavam menos e matavam mais. O príncipe devia conhecer também os
diversos tipos de armamento: maças, punhais, espadas, lanças, bestas (não confundir
com as cavalgaduras), arcabuzes e artilharia pesada, mais as indispensáveis
manhas, muito úteis para quem tem de matar para não morrer. Cavalgar é preciso,
e um príncipe sem se aguentar bem na sela é como um pião, rodopta, arrasta-se e assenta na terra, e, sendo assim, nada
melhor do que começar por ler o livro que o seu avô Duarte escreveu: Livro
de Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela, onde o segundo rei da segunda
dinastia descreve, com experiência e saber próprios, a forma como um bom
cavaleiro deve atacar o adversário e a postura que deve tomar quando a passo ou
a trote deslumbra a assistência nos torneios e cerimónias sociais. Para que não
faltasse nada na educação do príncipe, o rei seleccionou moços para crescerem
com ele, dividirem ensinamentos e artimanhas, desde as mais frívolas
brincadeiras às menos confessáveis. Este expediente viria a tornar-se muito
útil no percurso de João, pois
fomentou amizades e lealdades que perduraram depois por toda vida.
Caso arrumado. O príncipe iria matar mouros, fazer crescer Portugal
à beira do Atlântico marroquino, e nem era necessário o pai estar com tantos
receios, porque o jovem, protegido pela impenetrável armadura, só se caísse ao
mar é que poderia ir ao fundo e afogar-se. Assim sendo, João deixou a esposa a crescer e foi na armada que iria assaltar
Arzila. Em 15 de Agosto de 1471,
a armada zarpou de Lisboa fazendo a viagem em cinco dias, todos muito quebrados
e enjoados dos balanços dos navios quando chegaram defronte das muralhas da cidade.
Desta vez Afonso V pôs todo o cuidado na táctica. Enviou à frente espiões para tirarem
as medidas à cidade. Pero Alcáçova e Vicente Simões, disfarçados de
negociantes, misturaram-se com a população para estudar a melhor forma de
ludibriar os mouros: mediram as muralhas, o número de portas, aquelas que mais
expostas estavam, as zonas da cidade onde o poder político e militar muçulmano
se reunia, a melhor localização para desembarcar e atacar a cidade. Diante das
muralhas, uma frota com mais de quatrocentos navios, entre caravelas, barcas,
fustas, navetas, trazia dentro de si cerca de trinta mil combatentes. Como no
reino não havia toda essa mão-de-obra especializada no manejo de armas, o rei
viu-se na necessidade de gastar o ouro que já nessa altura vinha do Golfo da
Guiné para contratar uma chusma de mercenários à procura do saque e da
aventura.
Assim que chegaram, logo se viu que as dificuldades eram maiores
do que aquelas que os dois espiões tinham relatado. A imprevisibilidade é um
factor que deve ser sempre considerado, e, por isso, quando a armada começou a
desembarcar, o mar agitado e as rochas que formavam pequenos estreitos diante
da fortaleza fizeram das suas. Antes mesmo de pegarem fogo às bombardas, foram
ao fundo mais de duzentos combatentes, entre estes, bons fidalgos, escudeiros e
cavaleiros, sendo que a maior parte era gente de pé. Com tanta tralha em cima,
era como se lhes pusessem pedregulhos nos pés. Mas não há como ter coragem.
Diante de tais dificuldades, os que desembarcaram, e foram muitos, puseram logo
os canhões a lançar bojardas sobre as muralhas, fazendo-lhes buracos tão largos
como portas abertas para o interior da cidade. Estava na hora do tiro ao mouro.
Os arremessos continuaram, com os artilheiros a abrir caminho para os
espingardeiros e arqueiros fazerem a parte que lhes competia, desfechando as
suas munições sobre os locatários. No dia 24 já o representante do alcaide
propunha tréguas. Nem pensar, as súplicas não lhe valiam de nada. Nesse mesmo
dia a cidade foi tomada pelo exército cristão, trinta mil homens valentes
dispostos a perseguir e matar todo o mouro que gesticulasse. Afonso V por seu
lado, fazia diante do filho demonstrações de valentia. Quando Álvaro Castro,
conde de Monsanto, levou com um calhau em cima, a armadura encarquilhou tanto
que não lhe valeu de nada ser corajoso. Um fidalgo de tanta firmeza, leal como
poucos, morre-me aos pés, protestava o rei cheio de dó. Depois, dirigindo-se ao
filho, incentivou-o. Vede, meu filho, como a coragem nem sempre é compensada.
Mas é preciso prosseguir, mostrar aos hereges que não retrocedemos nem
perdoamos aos que ofendem a nossa santa religião (?).
Entretanto espalhou-se a notícia de que havia na cidade oitenta
mil dobras de ouro, o que acicatou ainda mais a soldadesca. Arrasavam casas,
partiam objectos, paredes, revolviam arcas, matavam quem se opunha.
Incentivados por Afonso V, um rei esbanjador, foi-lhes permitida a escala franca (todos os despojos
de guerra são permitidos sem regras ao vencedor) e o soberano nem sequer
reclamou o quinto que lhe
pertencia por direito. O que ele não dispensava era a tomada de reféns. Quando
os assaltantes chegaram ao Al-Ksar (designado
como palácio fortificado com funções político/militares, podendo ser também
castelo fortificado ou residência real) e à volta da mesquita, a luta foi
sangrenta. Terão morrido cerca de dois mil combatentes mouros, tantos que o
príncipe João, para provar ao pai como tinha participado na razia, mostrou-lhe
a espada retorcida. Os cativos foram muitos, cerca de cinco mil, entre eles
duas mulheres e um filho do sultão que veio a dar muito jeito a Afonso V para
permutar os ossos do tio Fernando, há mais de trinta anos pendurado na
fortaleza da cidade de Fez. O lado mais feliz da missão ocorreu quando o rei
libertou cinquenta cativos portugueses, que tinham sido aprisionados anos
antes, permitindo-lhes voltar ao reino, e se a oportunidade chegasse, regressar
à luta para serem cativos outra vez ou mortos a pelejar». In Jorge Sousa Correia, As
Sombras de D. João II, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-155-0.
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