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Num mundo que considera que a boa morte
é a morte brutal, se possível inconsciente, ou pelo menos rápida, para não
perturbar muito a vida dos que ficam, um testemunho sobre os últimos instantes
de vida, sobre o incrível privilégio que pode representar o facto de se
testemunhar isso, não me parece supérfluo. Melhor ainda, espero contribuir para
a evolução da sociedade. Uma sociedade que, em vez de negar a morte, aprenda a
integrá-la na vida. Uma sociedade mais humana na qual, conscientes da nossa
condição de mortais, respeitemos mais o valor da vida. Espero conseguir
sensibilizar o leitor para a riqueza de uma assistência nos últimos momentos de
vida de uma pessoa próxima. Eu própria fui descobrindo essa riqueza no decorrer
dos anos. A minha vida viu-se transformada por ela. Morrer não é, como tão
frequentemente supomos, um tempo absurdo, desprovido de sentido. Sem diminuir a
dor de um percurso feito de lutos, de renúncias, gostaria de mostrar quanto o
tempo que precede a morte pode ser simultaneamente o de uma realização da
pessoa e da transformação do que a rodeia. Muitas coisas podem ainda ser
vividas.
A
um nível mais subtil, mais interior, no modo como nos relacionamos com os outros.
Quando nada mais resta fazer, podemos ainda amar e sermos amados, e muitos
moribundos, no instante de deixarem a vida, nos têm lançado esta mensagem
pungente: não passem ao largo da vida,
não passem ao largo do amor. Os últimos instantes da vida de um ser amado
podem constituir a ocasião de ir o mais longe possível com essa pessoa. Quantos
de nós aproveitam essa ocasião? Em lugar de olhar de frente a real proximidade
da morte, fazemos de conta que ela não vai chegar. Mentimos ao outro, mentimos
a nós próprios e, em vez de dizer o essencial, em vez de trocarmos palavras de
amor, de gratidão, de perdão, em vez de nos apoiarmos uns aos outros para
atravessar esse momento incomparável que é o da morte de um ser amado, pondo em
comum toda a sageza o humor e o amor de que o ser humano é capaz para enfrentar
a morte, em vez de tudo isso, esse momento único, essencial da vida, é rodeado
de silêncio e solidão. Este estudo é o fruto de sete anos de experiência junto
de pessoas próximas da morte, que vieram terminar as suas vidas numa unidade
hospitalar parisiense de cuidados paliativos. É ainda o fruto de vários anos de
diálogos com pessoas seropositivas, ou com doentes de sida hospitalizados num
serviço de doenças infecciosas. Foi elaborado no decorrer da minha própria
reflexão, bem como da dos meus próximos e amigos.
Estou
à cabeceira de ‘Bernard’. Gemeu baixinho, e a sua mão veio abrigar-se na minha.
Meu anjo, murmurou, com uma incrível
ternura. ‘Bernard’ está a morrer de sida e a viver os seus derradeiros dias na
unidade de cuidados paliativos onde trabalho. Bernard é um amigo. Tem apenas
quarenta anos. A doença afundou-lhe os traços e descarnou-lhe o corpo, mas
conserva sempre a mesma juventude e a mesma beleza regular no seu rosto. E essa
beleza, preservada mau grado tudo, tão frágil, tão vulnerável, comove-me. Como
nos tínhamos prometido, aqui estou a seu lado, nesta vigília paciente e
afectiva que se chama acompanhamento. Há quinze dias, interrompi as minhas
férias para fazer uma vigília à sua cabeceira. Ele sentia que ia morrer em
breve, e eu também sentia que era preciso vê-lo sem demora. Era uma evidência
que jorrava do fundo da alma. Assim, passei o dia 15 de Agosto com ele, num
clima de verdade e ternura que actualmente faz parte do tesouro de recordações
felizes que trago dentro do coração. Agora que regressei definitivamente das
minhas férias, e que ele se encontra num estado de fraqueza aponto de já quase não
conseguir falar, sinto-me feliz por ter experimentado esta necessidade de
vê-lo, enquanto podia ainda comunicar através da palavra». In Marie Hennezel, Diálogo com a
Morte, Editorial Notícias, colecção Ciência Aberta, Lisboa, 1997/2002, ISBN
972-460-793-3.
Cortesia
de ENotícias/JDACT