sábado, 13 de junho de 2015

A Garota das Laranjas. Jostein Gaarder. «Você está sentado, Georg? É bom que esteja, porque eu vou-lhe contar uma história electrizante... Talvez já se tenha instalado confortavelmente no sofá de couro amarelo. Isso caso vocês não o tenham trocado por outro, como vou saber?»

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«(…) Está sentado, Georg? Tive a impressão de estar ouvindo aquele vozeirão de trovoada, e agora não só no vídeo, eu a ouvia como se meu pai tivesse ressuscitado de uma hora para a outra e estivesse ali na sala connosco. Embora o envelope estivesse fechado, achei bom perguntar se os adultos já tinham lido aquelas páginas, mas todos negaram com a cabeça e garantiram que não tinham lido uma palavra. Absolutamente nada, disse Jorgen, e sua voz me pareceu acanhada, coisa não muito típica dele. Mas ele acrescentou que, quando eu terminasse, talvez eu pudesse deixá-los ler a carta do meu pai. Devia estar louco para saber o que havia nela. Sei lá por quê, achei que estava com a consciência pesada.
Você está sentado, Georg? É bom que esteja, porque eu vou-lhe contar uma história electrizante... Talvez já se tenha instalado confortavelmente no sofá de couro amarelo. Isso caso vocês não o tenham trocado por outro, como vou saber? Também posso perfeitamente imaginá-lo na velha cadeira de balanço do jardim-de-inverno, da qual sempre gostou tanto. Ou será que está lá fora na varanda? Não sei qual é a estação do ano. E, além disso, é possível que já nem morem mais no Humlevei. Como hei de saber? Eu não sei nada. Quem é o chefe do governo norueguês? Como se chama o secretário-geral das Nações Unidas? E, diga, como vai o telescópio Hubble? Tem ideia? Será que os astrónomos já sabem como é feito o universo? Muitas vezes tentei imaginar-me aí no futuro, mas nunca consegui ter uma ideia nem mesmo aproximada de agora, na sua vida actual. A única coisa que sei é quem é. Só isso. Não sei sequer com que idade está lendo isto. Talvez tenha doze ou catorze anos, e eu, o seu pai, há muito estou fora do tempo.
O facto é que já me sinto uma assombração, tenho de respirar fundo toda a vez que penso nisso. Agora entendo por que os fantasmas não param de fungar como bobos. Não é para assustar as pessoas que vieram depois deles. É porque acham dificílimo respirar noutra época tão diferente. Não é só um lugar na existência que nós temos. Temos um tempo limitado que nos foi atribuído. É assim, e só posso tomar como ponto de partida as coisas que agora me rodeiam. Escrevo em Agosto de 1990. Hoje, ou seja, no dia em que me ler, por certo já terá esquecido a maior parte do que nós dois vivemos nos meses quentes daquele verão em que tinha três anos e meio. Mas esses dias continuam pertencendo-nos, e nós ainda podemos passar muitas horas agradáveis juntos.
Vou contar uma coisa que actualmente não consigo tirar da cabeça: a cada dia que passa e a cada coisinha à toa que nós dois fazemos, aumenta a possibilidade de se lembrar de mim. Agora eu conto as semanas e os dias. Na terça-feira, nós estivemos no alto da torre de Tryvann, de onde se pode ver a metade do reino, dava para ver até a Suécia. A mãe também foi, fomos os três. Mas será que se lembra disso? Não pode ao menos tentar recordar, Georg? Tente, faça um esforço, pois isso tudo está aí, em algum lugar dentro de… Lembra daquele seu comboio enorme de madeira? Todo o dia passa horas brincando com ele. Eu estou-o vendo agora. Os trilhos, vagões e balsas espalhados no chão, exactamente como os deixou há pouco. No fim, eu precisei fazê-lo largar tudo porque estava na hora de ir ao jardim-de-infância, mas ainda tenho a impressão de que as suas mãozinhas continuam tocando no brinquedo. Não tive coragem de tirar um só trilho do lugar». In Jostein Gaarder, A Garota das Laranjas, tradução de Luis Araújo, Companhia das Letras, 2008, ISBN 978-853-590-712-4.

Cortesia Cletras/JDACT