sábado, 17 de novembro de 2012

O Anacronista. Crónicas. Manuel António Pina. «Laboriosas formigas que, enquanto cantávamos na rua e fugíamos à frente de todas as polícias, mastigavam metodicamente as sebentas em sombrios quartos onde não chegavam o fogo dos sonhos nem o clamor da vida, e reduziu a utopia… Façamos-lhe justiça: talvez, quem sabe?, sem eles cedo a despensa se tivesse esgotado e a festa tivesse acabado mal e numa tremenda ressaca...»


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(continuação)
Antes da crónica
«As páginas dos jornais são feitas da matéria da morte e do esquecimento. E as crónicas de jornal, filhas de Cronos, o tempo que passa, como também nós, homens que passamos, são pobres seres insubstanciais e irrisórios, provavelmente sem sentido, provavelmente inúteis. Que escrever, pois? E para quê?
Mas da Rua de Santo Ildefonso e da Rua de Ceuta chegam-me cartas de amigos; outra, comovente (eu é que sei!), chega-me da Rua de Nove de Abril; um desconhecido aborda-me no café; outro manda-me um velho recorte e uma fotografia; outro ainda escreve-me longamente falando das frágeis e inseguras palavras de que um dia a crónica aqui se fez e que irremediavelmente se perderam. E eu penso: talvez, afinal, alguma forma de efémera eternidade possa (quem sabe?) animar a furtiva vida de um jornal, um breve reflexo, uma fugaz emoção, possa, com um pouco de sorte, pulsar na notícia, na reportagem, na crónica e, por um instante, bater unanimemente no coração de outro homem, uma anónima identidade misteriosamente gerar-se entre desconhecidos pelo milagre de um verbo ou de um adjectivo, um clandestino sangue transbordar da página impressa e contagiar a inúmera vida que, lá fora, incertamente vive.
O gato, cansado de brincar, adormece no parapeito da janela. E a crónica, subitamente e injustificadamente feliz, começa então a escrever-se em mim». In Jornal de Notícias, 2/9/92.

Ruínas. Margens. Passagens
Crónica 20 anos depois
«O que foi feito dos meus amigos e das coisas belas e desmesuradas por que todos nós perdemos e ganhámos a juventude? Olho em volta e resigno-me:
  • os meus amigos cansaram-se e jazem agora em empregos rotineiros à espera da trombose ou do enfarte. Alguns passaram-se com armas e bagagens (e, naturalmente, proveito) para o lado do inimigo. Os melhores (mas que sei eu?) engordaram, para dizer a verdade, todos engordámos... - e tornaram-se cépticos e amargos, carregando a nossa memória comum como um pecado envergonhado. Muitos morreram em guerras sem sentido, ou tão só de tédio, de longo e insuportável tédio. Outros partiram para improváveis distantes lugares; um enlouqueceu (e esse foi, se calhar, o que, imóvel e cegamente, partiu para mais longe).
Aquilo por que, há 20 anos, estávamos dispostos a perder tudo o que tínhamos (que não era, aliás, grande coisa: tempo, paciência, a breve vida), desmoronou-se mesmo antes de termos levantado as primeiras inseguras paredes. Atrás de nós veio, pesadamente, a perigosíssima estirpe da chamada gente prática (laboriosas formigas que, enquanto cantávamos na rua e fugíamos à frente de todas as polícias, mastigavam metodicamente as sebentas em sombrios quartos onde não chegavam o fogo dos sonhos nem o clamor da vida), e reduziu a utopia a dimensões razoáveis e geríveis. (Façamos-lhe, no entanto, justiça: talvez, quem sabe?, sem eles cedo a despensa se tivesse esgotado e a festa tivesse acabado mal e numa tremenda ressaca...)
Hoje reunimo-nos lentamente nos cafés, aos fins de tarde, e recordamo-nos com complacência de nós próprios como de outras alheias pessoas. Nessa complacência me parece, às vezes, entrever alguma secreta mágoa e algum ressentimento. Em quantas ocasiões não nos tenho surpreendido falando com azedume dos filhos, e dos seus desejos, e da sua vida (da sua única vida!), como se aquilo que a eles, um dia, será dado, por sua vez, perder fosse irrisório e mesquinho ao lado do que nós próprios perdemos?» In Manuel António Pina, O Anacronista, Crónicas, Edições Afrontamento, 1994, ISBN 972-36-0323-3.

continua
Cortesia de E. Afrontamento/JDACT