Semeador de Cultura e Cidadania
A figura de Bento de Jesus Caraça, o seu magistério universitário e a
sua actividade científica, o seu labor cultural e a sua constante intervenção cívica
e política, marcou profundamente a vida portuguesa contemporânea, desde os
últimos anos da década de 20 até aos nossos dias.
Professor catedrático da Universidade Técnica de Lisboa, cientista e pedagogo
de renome internacional; fomentador e dirigente de instituições e periódicos científicos
e culturais; conferencista e autor de ensaios inesquecíveis; militante
comunista e impulsionador de movimentos unitários de resistência ao fascismo,
clandestinos e legais, por tudo isto repartiu, sabiamente e com quotidiano
empenho, a sua vida, e tão breve ela foi.
Detentor de excepcionais qualidades intelectuais, possuidor de uma
vasta e sólida cultura científica, histórica, filosófica e artística e, além
disso, abnegado obreiro apetrechado com as ferramentas do materialismo dialéctico
e do materialismo histórico, Bento
Caraça repudiou com firmeza o isolamento na "torre de marfim" do
sábio e do pensador. Por isto o vemos, desde muito cedo, na primeira linha
daqueles que, correndo os mais graves riscos, pela acção clandestina ou pela
luta a peito descoberto, fizeram frente à repressão e ao obscurantismo do
Estado Novo.
Homem de diálogo e de consensos, sem esquecer jamais os princípios essenciais
que o norteavam, teve sempre, pela vida adiante, a preocupação de agitar
ideias, convicto como estava e fez questão de sublinhar, ao terminar a
conferência A Escola Única, que agitar ideias, a despeito do que dizem certos
escribas abafadores de cultura, agitar ideias é muito mais do que viver, porque
é ajudar a construir a vida.
Foram anos tormentosos, os da primeira metade do século passado, e foi
nesses anos que Bento Caraça viveu,
sendo contemporâneo, portanto, no plano nacional, do derrube da monarquia e das
esperanças nas promessas trazidas pela Primeira República, bem cedo perdidas;
da vida perturbada desta e da chegada da ditadura militar, que a deitou por terra;
do malogro das várias tentativas revolucionárias, em especial as de 1927 e
1931, contra essa mesma ditadura militar; da ascensão do Estado Novo e da
formação e desenvolvimento do movimento antifascista em Portugal; da fascização
dos sindicatos e da greve insurreccional de 1934, do anseio a breve trecho frustrado
de derrubar o fascismo, logo que a Segunda Guerra Mundial terminou.
Do mesmo modo, foi contemporâneo, a nível internacional, da Primeira
Guerra Mundial e da revolução socialista de Outubro; da devastadora crise
económica mundial de finais dos anos 20 e começos da década de 30; da tomada do
poder pelo fascismo e pelo nazismo em vários países europeus; da implantação da
república em Espanha e das experiências exaltantes da Frente Popular, neste
país e em França. Foi contemporâneo, ainda, da Guerra Civil espanhola e da
Guerra Mundial de 1939-1945 e, por fim, da esperança renascida, com a vitória
das forças democráticas do mundo sobre o nazi-fascismo.
Contemporâneo de tantos e de tais acontecimentos, dessa época
de transição, uma ponte de passagem entre aquilo que desaparece e o que vai
surgir (as palavras são suas), em nada surpreende, ao
percorrermos as páginas da história portuguesa desses anos dolorosos mas de
esperança, nelas encontrarmos a cada passo a presença moral e a presença física
de Bento Caraça:
- a sua abnegada intervenção nas grandes batalhas travadas pelo povo português ao longo dos anos contra o obscurantismo e pela cultura,
- a sua participação na luta contra a guerra e o fascismo,
- o seu empenho de todas as horas nos movimentos cívicos que pugnavam pela reconquista das liberdades.
Em suma:
- a sua participação no despertar a alma colectiva das massas, que por demais sabia ser a grande tarefa que está posta, com toda a sua simplicidade crua, à nossas geração, como reconheceu perante os jovens da União Cultural Mocidade Livre que o escutavam na sede da Universidade Popular em 25 / 5 / 1933, durante a inesquecível conferência que aí realizou.
Ainda não surgiu a biografia de Bento
Caraça tão ansiosamente esperada, o seu retrato em corpo inteiro. Mas o que
já é conhecido acerca da sua vida , da intervenção que teve em áreas essenciais
da sociedade portuguesa do seu tempo, no ensino, na cultura, na vida cívica,
permite avaliar a dimensão e a qualidade dessa intervenção, quanto ela foi
determinante em tantos casos». In Alberto Pedroso, Bento de Jesus Caraça,
Semeador de Cultura e Cidadania. Inéditos e dispersos, Campo das Letras
Editores, Porto, colecção Cultura Portuguesa (1.38.010), 2007, ISBN
978-989-625-128-4.
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