«Quando nos debruçamos
sobre a política e prática governativas seguidas pelos reis e regentes que
conduziram os destinos de Portugal desde a morte de João III, em 1557, até à
perda da independência, em 1580, é possível constatar, relativamente a este
assunto, as lacunas existentes as quais se avolumam no que respeita à
governação filipina. A fase, entre 1556 e 1665, quando os Filipes ocuparam o
trono da monarquia espanhola tem merecido particular interesse dos
historiadores que nas últimas décadas procuraram estudar a instituição
inquisitorial do reino vizinho, nas suas múltiplas vertentes, actividade
inquisitorial, estruturas administrativas e de procedimento inquisitorial,
formas de controlo ideológico, relacionamento institucional com outros poderes,
alargamento da sua acção a outros espaços geográficos exteriores ao reino, etc.
Esta situação explica-se pelo facto de durante parte significativa do referido período
a Inquisição (maldita), em Espanha, ter vivido o seu momento de apogeu. Porém,
a historiografia portuguesa não trilhou os mesmos caminhos e os sessenta anos
durante os quais os referidos representantes da Casa de Áustria assumiram,
igualmente, a condução dos destinos do reino português constitui, precisamente,
um período em que a história da Inquisição (maldita) portuguesa necessita de
ser estudada de forma aprofundada.
Hoje, infelizmente, pouco
mais sabemos sobre o equilíbrio de forças entre o poder real e o Tribunal do
Santo Ofício (maldito) do que há algumas décadas atrás. Contudo, esta temática,
que justifica e merece, por si só, uma reflexão aprofundada embora não possa
encontrar, por isso mesmo, espaço no âmbito deste trabalho, merece-nos, contudo,
algumas considerações. O processo de estabelecimento, crescimento e
fortalecimento do Tribunal do Santo Ofício (maldito), marcado por avanços,
recuos e vicissitudes de ordem vária, não se processou à margem do poder real.
Interessa procurar compreender qual o papel que a realeza desempenhou nesse
processo e qual o grau de interdependência que se criou entre os dois poderes,
em consequência desse envolvimento, bem assim que papel coube aos
cristãos-novos na moldagem dessa relação.
Há que averiguar, entre
outros aspectos, se a anexação de Portugal-Castela, em 1580, acarretou
alterações significativas no relacionamento existente, até então, entre a Inquisição
(maldita) portuguesa e o poder régio e se as alterações registadas, em Espanha,
nas relações, vínculos e dependência entre o Tribunal do Santo Ofício (maldito)
e o poder régio, entre o reinado de Filipe II e o de Filipe IV, tiveram
paralelo em Portugal ou se, pelo contrário, a Inquisição (maldita) portuguesa
conseguiu, efectivamente, garantir a sua autonomia. O elo entre os Filipes e a
instituição inquisitorial portuguesa e o papel que os cristãos-novos
desempenharam nesse contexto, constituem aspectos que merecem, igualmente, uma
reflexão profunda. Consideramos que uma resposta efectiva a este conjunto de
questões se afigura fulcral para compreendermos melhor não apenas a forma como,
ao longo da governação filipina, a instituição evoluiu e se relacionou com o
poder régio, mas também a atitude da Inquisição (maldita) em relação a este,
após a Restauração.
Que eventual impacto
pode esta conjuntura específica ter tido:
- no fortalecimento do poder do Tribunal do Santo Ofício (maldito), em Portugal;
- na relação estabelecida entre poder real e instituição inquisitorial;
- na que o poder real e inquisitorial estabeleceu com os cristãos-novos.
Filipe II e o Tribunal do Santo Ofício (maldito): Um momento de “graça” entre ambos os poderes
A relação entre o filho
do Imperador Carlos V e a Inquisição (maldita) é um tema complexo e, ainda,
escassamente conhecido. Independentemente da discussão em torno da utilização,
por parte de Filipe II, do Tribunal com fins políticos e sociais, questão
colocada já no século XVIII e hoje sustentada, em maior ou menor medida, pelos
investigadores dos temas inquisitoriais, o apoio do monarca à Inquisição (maldita)
não levanta, hoje, dúvidas. Filipe II assumiu o papel de seu protector,
fortaleceu a instituição inquisitorial, reformando as suas estruturas, e
preocupou-se em definir o seu âmbito jurisdicional, motivo, aliás, de conflito
com o Papado, conferindo-lhe um poder ilimitado e transformando-a num meio de
provocação constante às outras jurisdições. Esta linha política definida por
uma ideologia religiosa não se apresentava, em finais do século XVI, como algo
novo devendo ser entendida, apenas, como a continuação do conceito monárquico
iniciado pelos reis católicos. Filipe II pretendeu implantar com toda a pureza
o conceito religioso de seus bisavôs e promover o desenvolvimento, com total
amplitude e independência, das instituições por eles criada, processo que se
iniciou naquele reinado e se prolongou até ao século XVIII». In
Maria do Carmo Teixeira Pinto, Os Cristãos-Novos de Elvas no reinado de D. João
IV. Heróis ou Anti-Heróis?, Dissertação
de Doutoramento em História, Universidade Aberta, Lisboa, 2003.
Cortesia de U.
Aberta/JDACT