«Segundo um dos seus biógrafos, Tales de Mileto visitou o Egipto para se
encontrar com os sacerdotes e astrónomos, de quem teria aprendido geometria.
Quanto aos segredos relacionados com a sua religião, os sacerdotes egípcios
parecem ter guardado mais reservas. É particularmente interessante a descrição
de Porfírio (233-304 d.C.) que, evocando a viagem de Pitágoras ao Egipto, expõe
as dificuldades que o sábio teve que enfrentar para vencer a resistência dos sacerdotes
egípcios e ser iniciado nos seus segredos:
- Tendo sido recebido por Amasis (568-526 a.C) ele obteve cartas de recomendação para os sacerdotes de Heliópolis, que o enviaram para Mênfis, uma vez que eram mais velhos, o que no fundo era apenas um pretexto. Então, pelas mesmas razões, foi então enviado de Mênfis para os sacerdotes de Diaspolis, Tebas. Estes últimos, temendo o rei e não se atrevendo a dar falsas desculpas para excluir o recém-chegado do seu santuário, pensavam verem-se livres dele forçando-o a empreender tarefas difíceis e inaceitáveis para alguém com uma educação helénica. Tudo foi feito para conduzi-lo ao desânimo de modo a demovê-lo da sua missão. Mas como ele executou zelosamente tudo o que lhe foi pedido, os sacerdotes acabaram por nutrir grande admiração por ele, tratando-o respeitosamente e permitindo-lhe até sacrificar diante dos seus deuses, o que até então nunca tinha permitido a um estrangeiro.
Segundo Jamblico, Pitágoras passou 22 anos da sua vida no Egipto,
visitando todos os lugares santos, cheio
de profundo respeito, admirado e respeitado pelos sacerdotes. Embora
envolta em controvérsia, também a suposta viagem de Platão ao Egipto visava o
estudo de geometria e teologia. Reportando-se ou não a eventos reais, a verdade
é que todas as alusões à estada de sábios gregos no Egipto referem a mesma
dificuldade inicial em penetrar nos segredos dos sacerdotes. Evidentemente a
visão que os autores clássicos nos transmitem sobre a iniciação egípcia
permaneceu, durante muito tempo, a única fonte disponível para a compreensão do
tema. Apesar de ter conduzido frequentemente a interpretações erróneas por
parte dos estudiosos que, desde o Renascimento, conjecturaram sobre os
mistérios do Egipto faraónico, a verdade é que, à luz das noções actuais da
egiptologia, os relatos dos autores clássicos parecem fidedignos. A descrição
feita por Porfírio sobre a permanência de Pitágoras no Egipto coloca a
revelação e o culto em relação directa entre si. Só depois de um longo período
de preparação, em que a força de vontade de Pitágoras foi testada, é que os
sacerdotes acederam em lhe transmitir o conhecimento, permitindo-lhe ‘sacrificar diante dos seus deuses’.
Embora em plano secundário para os sábios gregos, a iniciação no culto divino
estava entrosada com a revelação do conhecimento sagrado, o que constituía uma
característica marcada da iniciação egípcia. Na verdade, embora os autores
clássicos vissem nas provações iniciais apresentadas pelos sacerdotes egípcios
uma desconfiança para com os estrangeiros, o mais provável é que as mesmas
dificuldades fossem colocadas perante qualquer candidato à iniciação. Estas
indicações alertam-nos desde já para o facto de, ainda antes da helenização dos
cultos egípcios, ter existido um processo de preparação que combinava a iniciação
no culto divino com a revelação de conhecimentos sagrados. Disso mesmo nos dá
testemunho Heródoto que evoca explicitamente a celebração de mistérios de
Osíris e Ísis, nos quais, segundo indica, ele próprio se teria iniciado:
- Também existe em Saís, no santuário de Atena, o sepulcro daquele não creio ser conforme à piedade de pronunciar o nome, nesta ocasião. Está atrás do templo e estende-se ao longo do seu muro. No recinto sagrado erguem-se dois obeliscos de pedra, um lago está na sua vizinhança, delimitado por paredes de pedra cuidadosamente construídas, tão vasto como o lago de Delos , chamado de ‘circular’. À noite, são encenadas representações da sua paixão, que os egípcios chamam de ‘mistérios’. Conheço em detalhe estas representações, mas guardo o silêncio sobre este assunto. Farei o mesmo sobre as festas de iniciação de Deméter, (...).
Para além da relação entre a cripta de Osíris e o lago, o texto de Heródoto
coloca em evidência a encenação nocturna destes mistérios, o que é igualmente
referido no relato muito mais tardio de Apuleio, ‘O Burro de Ouro’, já no
contexto do culto alexandrino de Ísis». In Rogério Sousa, Iniciação e Mistério no Antigo
Egipto, Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-56-4.
Cortesia da Ésquilo/JDACT