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«(…) Deixe de sonhar acordada, khanom Simone, ralha Pérola, a parteira,
trazendo-me de regresso às montanhas, ao sabor dos testículos de galo a azedar-me
a boca. Caso não fique grávida, o seu marido partirá para o yengeh donyah. Barba, o dono da casa de
chá da esquina, acha que o yengeh donyah
é o fim do mundo, um qualquer lugar algures, longe da Pérsia. Tão longe quanto o
Vale das Civetas, suponho. Pérola tira de dentro da túnica um pedaço de carne
que lembra couro velho, nunca o sei o que é, e, por debaixo da axila, coloca-o
na boca da criança embrulhada no chador
que lhe cobre os ombros. Como pode ver, man
hameh kareh hastam.
Oui, oui, julgo que sim, julgo que ela pode
ser excelente em tudo o que diga respeito a cuidar de uma criança. Mas eu preferia
voltar para Teerão e enfrentar Yaghout que a deixar esta mulher cuidar de
qualquer filho que eu possa vir a ter. Crava em mim o olho bom. Quanto ao
outro, não passa de uma forma vazia e leitosa, parecida com uma cabra morta. Conta-me
que perdeu o olho devido a uma epidemia de tracoma ocorrida em Rasht, uma cidade
no Norte da Pérsia, e apressa-se a acrescentar que o olho bom vê melhor que os meus
dois juntos. Arranca um pouco de pasta à mistela que está a preparar no almofariz
e fá-la girar entre os dedos calejados até a transformar numa pequena bola pardacenta.
Abano a cabeça e garanto-lhe não estar disposta a consumir caganitas de galinha,
pois é isso que o preparado me faz lembrar.
Nesse
caso, ameaça ela, enrolando a trouxa, caso não esteja interessada em
engravidar, que seja feita a sua vontade. Vim até aqui para fazer de si uma esposa
a sério. Que outra coisa faria uma muçulmana devota, khanom, a não ser ajudar uma estrangeira recolhida nas montanhas? Pérola
surgira à minha porta na semana anterior. Levava uma mensagem de Yaghout: mesmo
que Cyrus tenha casado com uma goy francesa, continua a ser um judeu persa. E,
como todos nós, merece ter um filho que recite o kaddish aquando do seu
enterro. Nesse dia, ao ver Pérola à minha porta, senti um medo quase palpável
invadir-me as veias. E se eu nunca conceber? E, se eu nunca engravidar com um filho
de Cyrus?
Abri
a porta de par em par, recuei, e convidei a parteira a entrar na maisonette que estava a transformar num lar.
Equilibrada entre dois rochedos, a casa ergue-se muitos milhares de metros
acima de Teerão, a capital, e dela obtém-se uma visão assustadora do vulcão Damavand,
uma fonte da mitologia persa. As montanhas em redor estão repletas de rios, cascatas
e poços que se juntam aos rios Karaj e Jajrud para irrigar a cidade sedenta lá em
baixo. Ao nascer do dia, quando as nuvens estão tão baixas que parecem tocar o
nosso telhado de ardósia, os viajantes batem-nos à porta. Buscam uma chávena
quente de chá, um copo de sumo de romã, ou uma omeleta de tâmaras e cebola, e querem-no
antes de seguirem viagem ate ao cume, antes de o sol do Verão lhes queimar os ombros
até estes parecerem de pedra, ou de o vento do Inverno arrastar o manto de neve
e de o transformar em lascas cristalinas. Os tons em constante mudança da pedra
e da terra, da chuva e da neve, transmitem a sensação de que um só dia contém as
quatro estações. O silêncio, quebrado pelo bater ocasional de cascos, pelo grasnar
dos corvos e o zurrar das mulas, não podia ser mais diferente do caos sensual
que rodeava o Château Gabrielle.
A decoração
do nosso quarto, com o seu espelho antigo que reflecte as imagens em tons matizados,
é primitiva. A cobrir o divã estão os meus saiotes. Aos poucos, a medo, a casa vai
revelando o seu encanto, e compreendo que aquilo que seria impossível na minha casa
de França, amar um homem, é aqui perfeitamente possível. Aqui é possível amar um
homem que, no mais alto das montanhas, tira os espinhos das flores silvestres que
me poderiam picar os dedos, que me chama jounam,
minha vida, que prende o cabelo comprido, até aos ombros, salpicado de prata, e
que usa um brinco com um diamante vermelho. Numa sociedade retrógrada, onde não
é tolerada a pele nua, ele deixa a camisa branca displicentemente aberta, de maneira
a revelar um torso musculoso, da cor das cascas das avelãs. É esta a forma que ele
tem de mostrar o quanto desaprova uma cultura rígida que insiste em não aceitar
a mulher que ele escolheu como esposa. Seja como for, tanto o Château Gabrielle
como as suas mulheres estão sempre presentes no baú que herdei da mamã. Abro-o para
tirar os seus vestidos, as suas capas, as suas máscaras, e enrolar fios de memória
em volta das montanhas e manter viva a minha família. E na pedra da lareira, sobre
o fogão a lenha, eternamente visível enquanto lembrete de tudo o que ele ganhou
e de tudo o que perdeu, está a bolsa com o tallit
de Cyrus. Trata-se de uma peça de tafetá, quadrada e esguia, e quando o sol se derrama
pela janela e ilumina a Estrela de David, os fios tecem teias prateadas no
tecto». In Dora Levy Mossanen, A Cortesã, 2005, tradução de Lucília Rodrigues,
Difel, 2006/2007, ISBN 978-972-290-860-3.
Cortesia
de Difel/JDACT