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As
lendas de Yelena Zaltana
«(…)
Após os aromas acidíferos de excrementos e odor corporal, provar aquele ar era
como beber um vinho fino. O calor acariciou a minha pele. Um toque agradável
comparado ao calabouço constantemente húmido e gelado. Supus ser o início da
estação do calor, o que significava que eu passara cinco estações trancada
naquela cela, uma estação além de um ano completo. Parecia um tempo
excessivamente longo para alguém cuja execução estava marcada. Cansada devido
ao esforço de marchar com os pés acorrentados, fui levada até uma sala
espaçosa. Mapas do Território de Ixia e das terras ao seu redor cobriam as
paredes. Pilhas de livros no chão dificultavam o caminhar em linha recta. Velas
em vários estágios de uso estavam espalhadas pelo recinto, e diversos
documentos pareciam chamuscados, sinais claros de que haviam chegado perto
demais das velas. Uma enorme mesa de madeira, abarrotada de documentos e
rodeada por meia dúzia de cadeiras, ocupava o centro da sala. Nos fundos do
escritório, um homem sentava-se atrás de uma escrivaninha. Nas suas costas, uma
janela quadrada estava aberta, permitindo que uma brisa soprasse pelos seus
cabelos à altura dos ombros. Eu estremeci, fazendo com que as correntes
chacoalhassem. Pelas conversas sussurradas entre as celas da prisão, eu já
concluíra que prisioneiros condenados eram levados até um oficial para
confessar os seus crimes antes de serem enforcados. Trajando calça preta e uma
camisa da mesma cor com dois diamantes vermelhos costurados na gola, o homem
atrás da escrivaninha usava o uniforme de um conselheiro do Comandante. O seu
rosto pálido não exibia nenhuma expressão. Quando os seus olhos, azuis como
duas safiras, me examinaram, arregalaram-se de surpresa.
Subitamente
dando-se conta de minha aparência, abaixei o olhar para a vestimenta de prisão
em frangalhos e para os pés descalços sujos, ásperos de tantos calos
amarelados. Pele empoeirada aparecia por baixo dos rasgos no tecido fino. Meu
cabelo preto comprido não passava de um monte de nós ensebados. Suando
copiosamente, cambaleei sob o peso das correntes. Uma mulher? O próximo
prisioneiro a ser executado é uma mulher? A sua voz era fria. O meu corpo
estremeceu só de escutar a palavra executada
sendo dita em voz alta. A calma que eu havia estabelecido escapou-me. Se os
guardas não estivessem comigo, teria desmoronado no chão, soluçando. Os guardas
atormentavam qualquer um que demonstrasse fraqueza. O homem passou a mão pelos
cachos escuros do próprio cabelo. Eu deveria ter me dado ao trabalho de reler o
processo. Ele gesticulou na direcção dos guardas. Estão dispensados. Depois que
se foram, ele acenou para que eu me sentasse na cadeira diante da sua
escrivaninha. As correntes fizeram barulho quando me empoleirei na beirada do
assento. Ele abriu a pasta sobre a mesa e examinou os papéis. Yelena, hoje pode
ser o seu dia de sorte, disse. Engoli em seco uma resposta sarcástica. Uma
lição importante que aprendi durante minha estada no calabouço foi a de jamais
responder com impertinência. Em vez disso, abaixei a cabeça, evitando fitá-lo
directamente nos olhos. O homem ficou em silêncio por algum tempo.
Bem-comportada
e respeitosa. Você está começando a parecer-me uma boa candidata. Apesar da
bagunça do aposento, a escrivaninha estava arrumada. Além da minha pasta e
alguns utensílios para escrita, os únicos outros itens sobre a mesa eram duas
estatuetas negras reluzindo com detalhes em prata, um par de panteras
esculpidas com uma perfeição quase real. Foi julgada e condenada pela morte de
Reyad, o filho único do general Brazell. Ele interrompeu-se, alisando as
têmporas com os dedos. Isso explica a presença de Brazell aqui essa semana, e o
interesse incomum que ele vem demonstrando pela agenda de execuções. O homem
parecia mais estar falando consigo mesmo do que comigo. Ao escutar o nome de
Brazell, senti o frio se manifestar em meu íntimo. Com o auxílio da lembrança
de que logo estaria para sempre longe do alcance dele, procurei me recompor. Os
militares do Território de Ixia haviam assumido o poder há apenas uma geração,
contudo tal governo dera origem a leis duras, chamadas de Código de Conduta.
Durante os tempos de paz, ou seja, na maior parte do tempo, o que poderia
parecer estranho para os militares, o comportamento apropriado não permitia que
uma vida humana fosse tirada. Caso algum assassinato fosse cometido, a punição
era a execução.
Autopreservação
ou mortes acidentais não eram consideradas justificativas aceitáveis. Uma vez
considerado culpado, o assassino era enviado para o calabouço do Comandante
para aguardar o enforcamento em praça pública. Suponho que vá contestar a
condenação. Dizer que foi incriminada, ou que matou em defesa própria. Ele
recostou-se na cadeira, aguardando com fatigada paciência. Não, senhor,
sussurrei, o máximo de que fui capaz com as cordas vocais há muito sem serem
usadas. Eu matei-o. O homem de preto endireitou-se na cadeira, lançando-me um
olhar duro. Depois, gargalhou. Isso pode acabar saindo melhor do que eu
planejei. Yelena, estou lhe oferecendo uma escolha. Você pode ser executada, ou
pode ser a nova provadora de comida do comandante Ambrose. O último provador
morreu recentemente e precisamos preencher a posição. Com o coração pulando eu
o fitei, boquiaberta. Ele tinha que estar brincando. Provavelmente estava divertindo-se
à minha custa. Óptima maneira de dar algumas gargalhadas. Observe a esperança e
a alegria brilharem no rosto do prisioneiro antes de enviar o acusado para a
forca e destroçá-lo.
Eu
resolvi fazer o jogo dele. Apenas uma tola recusaria o trabalho. A minha voz
saiu um pouquinho mais alta dessa vez. Bem, é uma posição vitalícia. O
treinamento pode acabar sendo letal. Afinal de contas, como é que vai
identificar os venenos na comida do Comandante se não sabe qual é o gosto
deles? Ele ajeitou os papéis na pasta. Terá um quarto no castelo para dormir,
contudo passará a maior parte do dia com o Comandante. Não haverá dias de
folga. Nada de marido e nem filhos. Alguns prisioneiros chegaram a optar pela
execução. Pelo menos, assim, sabiam exactamente quando iam morrer, e não
precisavam ficar imaginando se não seria com a próxima mordida. Ele cerrou os
dentes e um sorriso bestial apareceu no seu rosto. Estava falando sério. O meu
corpo todo estremeceu. Uma chance para viver! Servir ao Comandante era melhor
do que o calabouço, e infinitamente melhor do que a forca. Perguntas
atravessaram a minha mente: sou uma assassina condenada, como podem confiar em
mim? O que me impediria de matar o Comandante, ou de escapar? Quem é que prova
a comida do Comandante agora?, perguntei, receando que, se fizesse as outras
perguntas, ele se daria conta do seu erro e me enviaria para a forca». In
Maria V. Snyder, Estudos sobre Veneno, 2005, As lendas de Yelena Zaltana,
tradução de Maurício Araripe, ePub, Editora HR, Harlequin Enterprises, Rio de
Janeiro, 2011, ISBN 978-853-980-460-3.
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