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O medalhão de Ouro
«(…) Toda esta vasta área se anima de cenas particulares, de tarefas
específicas, de actividades muito definidas, em dada quadra do ano..., mas as
pessoas não têm rosto nem nome, são sempre uma generalização, os velhos, os
novos, as crianças, um homem, uma mulher, uma rapariga..., ninguém
individualmente assinalado, meu conhecido. Tomo com religiosa emoção
esse como que livro de horas da minha vida e folheio ao acaso as suas
iluminuras finamente lavradas na minha memória. As árvores na sua maioria já
perderam as folhas. Ao longe, ao correr de um ribeiro, esbate-se na mancha mais
escura, anilada, de montes baixos a fileira dos choupos esguios, de varas
apontadas ao céu azul onde passa um bando de patos bravos e um esmerilhão plana
calmamente em atentas volutas. Uma leira de terra está a ser arroteada. A junta
de bois inclina-se para a frente no possante esforço de puxar o arado sobre o
qual o lavrador se apoia para que o ferro entre bem no húmus. Noutro lado, em
campo que já foi embelgado, o abegão avança, sacola no ombro, fazendo com o
braço e a mão o gesto ritual e sagrado do lanço da semente e, para a cobrir, já
a grade com as aguçadas puas anda a estorroar e afofar a terra. Uma voz ecoa
nos meus ouvidos: quisesse Deus viesse chuva, que o chão não tinha lentura!
Numa cangosta o carro de bois, carregado de lenha apertada até cima
entre os fueiros e cordas, vai seguindo devagar, nos eixos chiando a sua
chorada melopeia. Um moço vareja as bolotas dos sobreiros. À sombra, por baixo,
andam os porcos, grunhindo, comendo a tenra glande. De algumas árvores já foram
extraídas grandes placas de córtex e o tronco desnudado, vermelho, a sangrar,
contrasta com o cinzento-azulado da cortiça. De quantos outonos, de quantos
novembros como este está povoada a minha experiência! A irmã natureza!... Que não
tenho vocação para a vida monástica? Lá isso é verdade. Mas uma coisa é certa:
sou franciscano de raiz e a terra, o céu, a água, as árvores, a seara, as sementes,
as aves, os animais do campo, tudo faz eco dentro de mim e em mim canta, num
hino magnífico, os louvores de Deus. Recordo outras estações do ano, outras
tarefas, outras canseiras, que pelas suas características foi noutras regiões
que me tiveram como espectador. Martius
habet dies xxxj... A tosquia das ovelhas, o amanho dos pâmpanos, a chegada
das andorinhas, o canto do rouxinol, os bandos de tordos..., mas onde foi isto?
Onde?... E que casa era aquela que me persiste concreta na memória, mas que
vejo só de fora? Porta larga, em arco, sem batentes, um boqueirão escuro que me
impede de querer entrar... Por cima a janela quadrada, aberta, também negra
para quem tivesse a veleidade de espreitar sequer o tecto. A seguir o
telhado..., de uma água.
A ramada, em frente, a todo o correr da casa para formar dossel, a ser
podada e atada por um moço meio sentado num degrau da escada arrimada à parede
lisa. Em baixo, o poço de que uma cachopa tira água, um renque de árvores de
fruto e a caniçada que veda da vinha a cortinha da casa. Mais adiante uma fiada
de cortiços que alguém vigia, os coelhos à solta em redor e, à distância, penhascos
alcantilados, arvoredo, um rio... Actividade febril. Por toda a parte homens e
mulheres, que trabalham em ritmo certo mas vagaroso, quase mecânico, calados.
De quando em quando, isolado, o canto triste de uma rapariga, enquanto num
galho de árvore o pisco-ferreiro martela e tilinta a sua bigorna. Lá há-de vir,
meses depois, o colher dos frutos. Augustus
habet dies xxxj, luna xxx. nox habet horas xj, dies vo xiiij... Por onde
andaram perdidos meus passos que a paisagem é outra? Ao fundo, numa depressão
da linha verde-anil das colinas, polido como um espelho o cobre do mar oceano.
Para cá, aloirada e brilhante do restolho, a vasta planície, em que se
distinguem disseminados os vários armazéns da quinta com seus telhados de
colmo, cheia de vida. Uma carroça de quatro rodas, tirada por duas juntas de
bois, aguarda ao fundo que acabe de ser atulhada até ao cimo com o trigo
recentemente ceifado que se vê, por toda a parte, arrimado em altas medas
boleadas. Uma outra, a abarrotar, vem já mais perto, puxada por duas parelhas
de muares que um moço de comprido varapau ao ombro vai guiando. Um carro de
bois, ainda por descarregar, descansa com a cabeçalha no apoio, enquanto em
volta, indiferentes à faina, porcos à solta esfocinham a terra e um bando de
patos se passeia em fila desengonçada, grasnando». In Fernando Campos, A Casa do Pó,
Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT