terça-feira, 10 de maio de 2016

A Musa de Camões. Maria Helena Ventura. «Ninguém me daria igual protecção, jamais me permitiriam tamanha liberdade. Nem eu saberia retirar do ânimo que me vai falecendo, o bastante para viver entre fortes emoções. Só tive desejo de cumprir a sua vontade»

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O pulsar lento da vida
«Levanta-se do rio um nevoeiro denso. Devagar encobre barcos, campos, o paço real de Enxobregas, nesta tarde de Outubro de 1577. Dona Guiomar confessa-me o temor de alguém se apoderar dos escritos a mando da rainha avó. Ofereço-me para os guardar até aos funerais e no melhor momento ela mesma poderá colocá-los junto ao corpo de Sua Senhoria. Tudo na presença de muito povo, para que ninguém se atreva a desviar uma folha. Percebendo-me as fundas olheiras, o meu desamparo no limiar da porta, diz-me para ficar uns minutos em privado a fazer as minhas orações. Insiste que Sua Senhoria o teria desejado. É um raro, finito privilégio que aceito, em silêncio, sem ninguém por testemunha. E ali me entrego à minha desolação, choro o abandono a que nos vota esta morte. Na verdade estive sempre perto dela, esgueirando-me pelos cantos quando não era oportuno. Tolerado em outras ocasiões, assumia a presença despertando simpatias, ouvindo melhor as conversas importantes que as damas também partilhavam. Fazia parte da bagagem da Senhora Infanta nas deslocações que fazíamos, por isso ninguém estranhava que rondasse. Menos real, porém, do que muitos desejariam, era o meu fingimento. Quase invisível sob o colorido gritante das roupas e adereços, podia ser votado à indiferença como qualquer pobre lacaio, mas sabia usar o sorriso à medida das circunstâncias, mais ainda quando meandros suspeitos o pediam. Não alcançava a parca inteligência da maioria que, entre as gargalhadas, registava até os planos das cenas aparentemente insignificantes. Intervinha com uma graça, mais forçada do que natural, de modo a desanuviar os momentos mais densos, e depois fazia a montagem dos retalhos para apresentar a Sua Senhoria.
Ela gabava-me a inteligência, a capacidade de apurar o que estava no fundo das coisas. Ao cair da tarde trazia-lhe fielmente o relatório oral, enquanto os seus olhos seguiam as tarefas das mãos ou as linhas de um novo livro, até que decidia da importância do que eu lhe contava, não raras vezes com um sorriso doce de mudo agradecimento por saber-se protegida. Foi a minha dedicação que lhe valeu, me valeu, a salvação de pior destino, pelo menos uma vez. Nem calculava levar tão longe a coragem, apesar de me ensinarem a brandir uma espada, quando ainda mal a segurava... Só diante da morte um bobo se eleva, estatura física e moral inteiras, por momentos. No resto a vida é tão passageira que nem reparamos que passa, absortos a tentar recuperar folhas mortas, a reanimar indecisões. E a centelha de luz a acenar-nos, repetidamente, até se cansar do alheamento. Lá fora a ramagem ondula num adeus suave, mitigado pela aragem providencial que me garante há de permanecer perto de ti... Sua Senhoria não está, para me proteger, repito-me entre sopros de vozes distantes É um tesouro que vos confio, Alteza... protegei-o sempre… Mas quem, com igual pureza de sentimentos, poderia eu servir, depois dela?
Ninguém me daria igual protecção, jamais me permitiriam tamanha liberdade. Nem eu saberia retirar do ânimo que me vai falecendo, o bastante para viver entre fortes emoções. Só tive desejo de cumprir a sua vontade, só tenho ouvidos para uma voz, a sua, gravada na minha alma: deveis guardar o que sentis, só revelar o que podeis… Respiro restos da terra mãe e seus oragos neste dia alheio ao desgosto que alastra no meu peito. Gritos antigos, estrangulados pelo esforço da sobrevivência, chegam aqui perfeitamente inteligíveis, enquanto desenrolo o pergaminho dos anos em retalhos da vida minha, às vezes composta com as histórias dos outros, nem por isso menos minhas. Dona Guiomar foi chamar os representantes de Sua Alteza, comodamente instalados no salão de recepções, à espera da notícia de mais uma morte, em tão pouco tempo. Em breve os mesmos rituais sem autenticidade, para a maior parte dos nobres um ensejo para mostrar seus trajes novos. Quando me aproximo do leito e vou para levantar o lencinho de renda do rosto da Senhora Infanta, desperta-me a curiosidade a ponta de um caderno pequenino sob o seu corpo ainda morno. Sem pensar duas vezes faço menção de o abrir, nunca com intenção de vasculhar o que diz, só para confirmar se foi escrito por ela. É a sua caligrafia, disso tenho a certeza, porém disposta de uma forma estranha, com as letras deitadas ao contrário, um código com o que parecem ser íntimas anotações que nesta hora não me esforço por desvendar.
Algum registo importante tem de ser, para o ter escondido Sua Senhoria, destinado a ser lido só por alguém de confiança, alguém como dona Guiomar. Então porque não terá ela recuperado o caderno mal a viu fechar os olhos? Se soubesse da sua existência não havia de o esquecer, não sabendo que existe é porque não quis Sua Senhoria dar conta dele a ninguém. Fico mais confuso para agir sem peso na consciência, se acaso resolver abri-lo. O que devo fazer para respeitar a sua vontade? Heresia ou atrevimento, guardo-o entre o meu peito e a roupa, a olhar em todas as direcções, a tremer de ansiedade por ter achado outro tesouro. Sobressalta-me o ruído de passos na direcção do aposento, cada vez mais nítidos...» In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT