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«Cuidado,
filha! Olha que cais! Menina, menina!, grita-me a aia. Não corra tanto. Venha antes
para aqui tecer guirlandas... Minha mãe, Cléis, tinha menos de vinte anos e meu
pai, Escamandrónimo, vinte e poucos, quando eu nasci. Puseram-me o nome de
Safo. A seguir a mim, nasceram mais três irmãos, Caraxo, Eurígio e Lárico. Família
aristocrática a nossa, descendente de Pêntilo, filho de Orestes, filho de Agamémnon.
Vivemos em Éreso. Entre dois mares. Para lá das muralhas brancas, a um lado ondeia
e murmura o azul do Egeu e ao outro, no tempo das colheitas, na concha da
planície ondulam e desferem suas cítaras as loiras searas cantantes guardadas por
medonhos espanta-corvos de esfarrapados braços abertos, cabeça de goela hiante,
de mãos em garra e coração de palha... O mundo rústico em que vivi! Campos, bosques,
regatos e açudes ladeados de salgueiros, a casa de meus pais, o cão amigo, a
pocilga dos porcos, os leitõezinhos rosados a chuparem as tetas da porca, as galinhas
e galos à solta a debicarem e esgravatarem minhocas no esterco, a perigosa colheita
do mel e da cera das abelhas nas fendas de rochas e de árvores, o pomar as groselheiras,
as amoras que tingem a boca...
Na relva
do jardim, sob as macieiras floridas ou à sombra de ciprestes e sicómoros, leves
esvoaçam as túnicas diáfanas das aias que cuidam das crianças. Contam-nos
histórias dos deuses e dos heróis, mitos de Esopo, sussurro de fábulas... Ouço-as
de olhos arregalados, a imaginação excitada procurando ver e palpar esses mundos
fantásticos, o espírito enriquecido e estimulado para sempre... Era uma vez, fala
Cléofis, um leão e um ónagro. Que é um ónagro?, pergunto. Um jumento selvagem. Jumento?
Sim. Foram à caça juntos. O leão com a sua força, o ónagro com a rapidez das patas.
Depois de caçarem vários animais, o leão separou a caça em três partes e disse:
a primeira é para mim como primeiro que sou: sou o rei, não sou? A segunda para
mim é, como participante na montaria. A terceira... adivinhai, queridinhos,
para quem ficou... - Ficou para o ónagro?, digo. A terceira..., disse o leão,
... grande mal te espera, se não fugires. Oh!, digo desolada. O leão é
mau, diz Íole. Pronto! Basta de histórias. Vamos mas é cantar e dançar. Elas ensinam-nos
cantos e, quase nuas, dançamos de roda. Bailemos, bailemos, meus pequeninos! Mãos
dadas, em volta dancemos!
O canto conheço das aves
todas
das aves o canto conheço
todas
Colhemos
fores, gágeas amarelas, cerefólios brancos, cilas liliáceas, raminhos de funcho
e eu teço grinaldas e com elas enfeito, entre risos, as cabecitas dos irmãos. E
a mim, não?, pega-me ao colo dando-me mil beijos Cleonice, moça formosa de quinze
anos, a túnica entreaberta descobrindo-lhe a nudez, os seios rijos encostados ao
meu corpinho de menina. Não me engrinaldas com as ruas mãozitas de rosa? Ajeito-lhe
no cabelo de oiro um raminho cheiroso de meliloto. Queridinha, já provaste o pé
desta flor?, e Cleonice toma da relva trevos de cheiro, trinca um e dá-me outro
a trincar. É bom, num péta!, faço uma
careta. Pois é. Não presta. Não diz com o nome. Amargas lhes chamam na minha
terra. Mas são boas para abrir o apetite. Gosto mais daquelas que têm suco
doce. As glicínias, as madressilvas... Os suga-méis, as abelhas, as borboletas
conhecem-lhes o néctar.
Num cabeço
rochoso, em redor da acrópole fortificada, ergue-se a cidade, de casinhas brancas
e telhados vermelhos, encostadas umas às outras. Dois riachos descem até ao mar.
Nas margens, trina, grita e pipila a ramagem das tamargueiras que dá sombra aos
rebanhos de cabras, cantam águas das fontes, descantam linfas-ninfas das ribeiras.
Crescem loureiros-rosa bravos, de flores rubras. Na primavera tapetam o chão
violetas, hiacintos e anémonas. De noite, ao luar, vem-nos das ondas o marulhar
das Nereidas. Nos bosques de carvalhos, plátanos e pinheiros mansos, nos
pomares de macieiras, marmeleiros, figueiras, romãzeiras, amendoeiras, em volta
das casas, gorjeiam roussinóis. Nas encostas soalheiras amadurecem as vinhas. Param
em Éreso, a descansar e a comer do nosso bom pão branco e a beber do nosso vinho
borbulhante e perfumado, os marinheiros dos barcos que da Grécia fazem rota para
Mitilene, para a Tróade e o Helesponto, para as cidades costeiras da Jónia. Por
entre oliveirais e pinheirais, coleia, vigiada das escarpas e das nuvens por águias
e gaviões, a estrada que leva ao outro lado da ilha. Nos altos, por clareiras de
bosques e matagais, escondem-se bandos de perdizes, ouve-se-lhes o piar… Conheceis
a história da perdiz traidora?, pergunta Íole. Conta! Conta!» In
Fernando Campos, A Rocha Branca, Editora Objectiva, Alfaguara, 2011, ISBN
978-989-672-111-4.
Cortesia
de EObjectiva/Alfaguara/JDACT