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O
pulsar lento da vida
«(…)
É dona Guiomar. Com um mover de olhos carregado de sentido, segreda-me que vêm
aí os outros. Corre então a buscar a caixinha donde tira os papéis que meto
numa das mangas tufadas, antes de invadirem o quarto e de eu me instalar na
antecâmara vazia. Lá dentro levo a mão ao peito, mas logo a retiro, como se o
coração me dissesse que ainda não é tempo de abrir o minúsculo caderno. Depois
apalpo o enchumaço da manga... Não é acertado tirá-lo, por enquanto. Encostado
à porta fechada rodo o olhar por todo o aposento. As paredes ainda estão
vestidas com panos de arrás, com retratos de menores dimensões das mesmas
personagens que povoam os salões, alguns já pintados por Gaspar Cão. É o mesmo
lugar dos móveis, dos objectos pessoais alinhados na mesa, o tinteiro seco, a
pena que tantas vezes segurou. Mas olhando o espaço onde dantes se sentava,
pergunto-me porque razão, tendo conseguido revê-la, não me sinto apaziguado,
porque pesam as lembranças que me vêm cercando? E no entanto é aqui que quero
estar, neste lugar onde Sua Senhoria viveu a revelação do seu grande amor, onde
tivemos as melhores conversas como no dia em que, forçando-me a sentar no
tamborete de couro, lhe revelei o segredo da minha identidade.
Ouso
transferir-me para a cadeira que foi sua, atrás da mesa. Imagino serem os meus
os seus olhos azuis, a medirem a rigorosa simetria dos objectos em relação ao
espaço. Em cada um dos cantos da sala, de cada lado da porta, um jarrão da Índia
quase da altura de uma pessoa meã. Nas estantes pequenas de madeira importada,
livros de impressão recente trazidos da biblioteca, os de leitura frequente em
cima da mesinha. Ainda aberto Crónica do
Felicíssimo Rei D. Manuel, escrito por Damião de Góis e publicado em 1567.
Lembro então que o humanista fora nomeado por alvará de João III do ano de
1548, guarda-mor da Torre do Tombo, cargo que exerceu mesmo depois do jesuíta
Simão Rodrigues o denunciar à Inquisição (maldita). O cerco que lhe faziam tinha por
raiz o muito rigor factual das obras que escrevia, mas sempre com límpida
isenção. De pouco lhe adiantou. Depois do jesuíta foram outros como o conde de
Tentúgal, Pêro Andrade Caminha... A crónica foi mal entendida pelo cardeal
Henrique e o autor acabaria por ser preso, torturado, só liberto muito perto de
morrer.
A
Senhora Infanta andava por demais atormentada com outras coisas para lhe poder
acudir. Tantos outros tinham sido presos, acusados de luteranismo, Diogo Teive,
Buchanan..., costumava reler certas partes das obras, mormente a de Góis por
falar de seu pai, e nunca encontrou senão perfeição sobeja para atrair
animosidade... Por estas e outras lembranças, como lamento não dispor de livre
arbítrio para mudar o curso dos acontecimentos, prolongar a vida de alguns, a vida
de Sua Senhoria. Mas se pudesse, teria engenho para fazer o que melhor lhe
conviesse, desejaria ela continuar a viver privada de alegria e esperança? Talvez
haja um tempo certo para tudo, até para cada um insuflar a existência ou
desistir dela. Fecho os olhos uns segundos. Lá de fora vem um riso estranho de
alguém que passa no corredor, um riso que não se acomoda ao momento, diferente
ainda daqueles risos cristalinos das damas a entrarem na sala de trabalho, a
desfiarem conversas ao ritmo dos bordados na talagarça. Tão gratas e vivas são
essas lembranças que as deixo fluir como raio de sol a romper as nuvens negras
que envolvem o paço. Anuncia-se o bom tempo, as moradoras numa roda a contarem
segredos, no meio delas Sua Senhoria a olhar-me, a esboçar aquele sorriso
irresistível que antes da voz me chamava, para me entregar um livro de gravuras
acabado de copiar para a tela, a minha mão a roçar a sua mão graciosa, o rubor
a subir-me ao rosto. As nuvens correm em direcção do mar, destapam a limpidez
aguada do céu. Agora são nítidos os aromas e os espaços de então, audíveis as
falas que sempre me acompanharam.
Ainda
agora discorria e tão pronto se foi. Misturam-se com os séculos que atravessei
estes minutos que abrem a porta a pensamentos melhores, como séculos me hão de
parecer os dias, os movimentos repetidos da onda na escuma do mar, o pulsar dos
corações próximos do meu na dor. Só os gestos dela únicos, emergindo de um
diferente borbulhar de vida, serão rápidos de mais, até no meu coração, que por
isso os desenrola de uma meada para enrolar na outra, sem nunca se cansar de os
rever vestidos de muita saudade. Não aproveita muito a um pobre momo divertir
os outros. A não ser para dar guarida aos danos de alma, adoçar disposições melancólicas.
Talvez carregar no seu o sofrimento alheio, numa ordem discreta a quem o ignora
para que deixe folgar um pouco quem padece. E sossegado com a consciência,
continuar a venerar quem lhe quer bem, guardar quem bem lhe quer da peçonha que
ronda. A peçonha. Parecia perseguir os caminhos da Senhora Infanta e até de
quem, por amor dela, procurava enganar o tempo em que se estiolava. Posto que
outro acordo de casamento tinha falhado, mudava-se-lhe o pensamento e o
semblante, tirava o sentido das frechas de Cupido e afogava as mágoas entre
frases sinuosas e discussões sobre leituras. Gostava de ouvir discorrer à volta
de perguntas difíceis, tantas vezes levantadas nos serões». In
Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN
978-972-883-940-6.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT