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«(…) E Gold, o protestante, comentou comigo: Deus curioso,
your God! Todo dia, everyday, padres everywhere! Today, terramoto, sofrimento,
not one priest! Nem um, damn! Where are eles, quando we need? Sorri perante o
seu habitual sarcasmo. Mas não era verdade. Naqueles dias, a vaguear pela
cidade destruída, encontrámos muitos homens e mulheres de Deus, e percebemos
que estavam tão perdidos como nós.
Dos vários personagens que conheci
naqueles estranhos dias, o rapaz foi curiosamente o primeiro que vi. Cruzámos
os nossos destinos logo na primeira manhã, e quando falei com ele já sabia o
que tinha feito, a coragem que revelara. Hoje, tenho pena de não o ter
elogiado. Talvez as coisas tivessem sido diferentes, talvez tivesse olhado para
mim com outros olhos. Mas não foi assim e não há nada que possa fazer para
mudar a história. O rapaz estava ainda próximo da arruinada Igreja de São
Vicente de Fora quando se deu o terceiro abalo. Embora determinado a procurar a
irmã, não lhe fora fácil atravessar aquele descalabro. Não existiam ruas, nem
casas, nem prédios onde antes tinham existido. Quando a nuvem de poeira
levantou, viu no meio daquela irrespirável bruma o Castelo de São Jorge e mais
em baixo a Sé, e foi assim que se orientou em direcção à sua casa, próxima da
Igreja da Madalena. Naquelas circunstâncias, andar era difícil: havia fendas
inesperadas e fundos precipícios no terreno; as ruas apresentavam-se impedidas,
atulhadas de pedras. Demorou a aproximar-se do Castelo e das suas muralhas. Os
mortos atapetavam o chão, em posições complexas, semelhantes a estátuas
esculpidas por desvairados. As pessoas corriam, atarantadas, como as crianças
perdidas, aos berros. O rapaz prosseguiu, determinado. Próximo da Graça, uma pequena multidão observava o Rossio, em
baixo, e a colina oposta, do Bairro Alto. Nada era como tinha sido. A cidade abatera,
como que deitando-se no chão, e nem os seus edifícios mais simbólicos haviam
escapado. Na praça, o Hospital de Todos-os-Santos era o único que parecia
intacto, mas ao seu lado tanto o Convento de São Domingos, como o Palácio da
Inquisição (maldito), haviam sido fortemente
atingidos.
Na encosta do Castelo de São Jorge e
mesmo em Alfama, o rapaz também só via desolação, e perguntou a si próprio o
que teriam feito para merecer tal castigo, mas não encontrou razão. Por isso,
cessou de procurar motivos e continuou a descer para a Sé, e com ele desciam
muitas pessoas que tinham subido para as festas em São Vicente de Fora e agora
regressavam às suas casas. Eram já pessoas diferentes, mudadas para sempre,
partidas por dentro, cheias de mágoa e desespero e medo do futuro. Tinham ido
encontrar-se com Deus naquele feriado e haviam sido massacradas de uma forma
inimaginável. Ao passar perto da Sé ouviu tiros. Deviam ter fugido prisioneiros
do Limoeiro e os soldados tentavam abatê-los, foi a sua conclusão, e decidiu
ter precaução, receando ser apanhado no fogo cruzado dos confrontos. Algumas
casas tinham ficado intactas, bem como a Sé, que, orgulhosa, apenas mostrava os
flancos danificados. Foi então que, mesmo à sua frente, viu três homens a
saírem de uma
casa. Arrastavam um desgraçado, provavelmente o proprietário. Atiraram-no ao
chão e deram-lhe um tiro, abatendo-o. O rapaz escondeu-se atrás de um monte de
pedras e ficou a observar. Um dos homens, mais alto do que os outros dois,
parecia ser o chefe. O seu cabelo e as suas barbas eram negros e dos seus olhos
e dos seus gestos emanava uma energia maligna. Vasculhou os bolsos do
proprietário e retirou um relógio. Depois, os três bandidos reentraram dentro
da casa e ouviram-se mais gritos, seguidos de um silêncio mais assustador do
que o barulho.
O rapaz aproveitou o momento e
recomeçou a andar, mas foi surpreendido pelo regresso abrupto do homem mais
alto, que se dirigiu ao morto. O rapaz sentiu medo. O grandalhão observou-o,
enquanto vasculhava as roupas do defunto. Sorriu quando encontrou uma chave e
depois perguntou ao rapaz: qué passa? O rapaz não respondeu, mas percebeu que o
ladrão era espanhol. Um dos seus companheiros saiu também de casa, trazendo uma
mulher pelos cabelos, que implorava: não, não, por favor, não! O homem enorme
olhou para o rapaz e riu-se, e depois perguntou: hay visto una mujer morrer? O
rapaz respondeu: sim. A minha mãe. O energúmeno soltou uma gargalhada e
perguntou-lhe: como hay morrido tu pobre madre? O rapaz contou-lhe: morreu lá
em cima, em São Vicente de Fora, na igreja. Executando uma mímica maldosa, o
bisonte benzeu-se e murmurou: paz à su alma... Pero, esta vai gozar mucho más
que tu madre... Aproximou-se da mulher, agarrou-a pela nuca e depois ordenou ao
seu subordinado: leva-la!!! O outro riu e acatou a ordem, mas antes
aconselhou-o, apontando na direcção do rapaz: matá-lo. Muertos no hablam con
soldados... O homem mais alto deu nova gargalhada, aproximou-se do rapaz e
perguntou: chico, quieres morrer? O rapaz disse que não. O matodonte agarrou-o
pelo cachaço, levou a mão ao cinto e empunhou uma faca, que depois lhe encostou
à garganta. A mi me gustan los chicos... Apesar do medo, o rapaz disse: eu só
queria água... O bandido, ao ouvir falar em água, pensou uns segundos». In
Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos
vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro,
2010, ISBN 978-972-461-986-6.
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