quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Na encosta do Castelo de São Jorge e mesmo em Alfama, o rapaz também só via desolação, e perguntou a si próprio o que teriam feito para merecer tal castigo»

jdact

«(…) E Gold, o protestante, comentou comigo: Deus curioso, your God! Todo dia, everyday, padres everywhere! Today, terramoto, sofrimento, not one priest! Nem um, damn! Where are eles, quando we need? Sorri perante o seu habitual sarcasmo. Mas não era verdade. Naqueles dias, a vaguear pela cidade destruída, encontrámos muitos homens e mulheres de Deus, e percebemos que estavam tão perdidos como nós.
Dos vários personagens que conheci naqueles estranhos dias, o rapaz foi curiosamente o primeiro que vi. Cruzámos os nossos destinos logo na primeira manhã, e quando falei com ele já sabia o que tinha feito, a coragem que revelara. Hoje, tenho pena de não o ter elogiado. Talvez as coisas tivessem sido diferentes, talvez tivesse olhado para mim com outros olhos. Mas não foi assim e não há nada que possa fazer para mudar a história. O rapaz estava ainda próximo da arruinada Igreja de São Vicente de Fora quando se deu o terceiro abalo. Embora determinado a procurar a irmã, não lhe fora fácil atravessar aquele descalabro. Não existiam ruas, nem casas, nem prédios onde antes tinham existido. Quando a nuvem de poeira levantou, viu no meio daquela irrespirável bruma o Castelo de São Jorge e mais em baixo a Sé, e foi assim que se orientou em direcção à sua casa, próxima da Igreja da Madalena. Naquelas circunstâncias, andar era difícil: havia fendas inesperadas e fundos precipícios no terreno; as ruas apresentavam-se impedidas, atulhadas de pedras. Demorou a aproximar-se do Castelo e das suas muralhas. Os mortos atapetavam o chão, em posições complexas, semelhantes a estátuas esculpidas por desvairados. As pessoas corriam, atarantadas, como as crianças perdidas, aos berros. O rapaz prosseguiu, determinado. Próximo da Graça, uma pequena multidão observava o Rossio, em baixo, e a colina oposta, do Bairro Alto. Nada era como tinha sido. A cidade abatera, como que deitando-se no chão, e nem os seus edifícios mais simbólicos haviam escapado. Na praça, o Hospital de Todos-os-Santos era o único que parecia intacto, mas ao seu lado tanto o Convento de São Domingos, como o Palácio da Inquisição (maldito), haviam sido fortemente atingidos.
Na encosta do Castelo de São Jorge e mesmo em Alfama, o rapaz também só via desolação, e perguntou a si próprio o que teriam feito para merecer tal castigo, mas não encontrou razão. Por isso, cessou de procurar motivos e continuou a descer para a Sé, e com ele desciam muitas pessoas que tinham subido para as festas em São Vicente de Fora e agora regressavam às suas casas. Eram já pessoas diferentes, mudadas para sempre, partidas por dentro, cheias de mágoa e desespero e medo do futuro. Tinham ido encontrar-se com Deus naquele feriado e haviam sido massacradas de uma forma inimaginável. Ao passar perto da Sé ouviu tiros. Deviam ter fugido prisioneiros do Limoeiro e os soldados tentavam abatê-los, foi a sua conclusão, e decidiu ter precaução, receando ser apanhado no fogo cruzado dos confrontos. Algumas casas tinham ficado intactas, bem como a Sé, que, orgulhosa, apenas mostrava os flancos danificados. Foi então que, mesmo à sua frente, viu três homens a saírem de uma casa. Arrastavam um desgraçado, provavelmente o proprietário. Atiraram-no ao chão e deram-lhe um tiro, abatendo-o. O rapaz escondeu-se atrás de um monte de pedras e ficou a observar. Um dos homens, mais alto do que os outros dois, parecia ser o chefe. O seu cabelo e as suas barbas eram negros e dos seus olhos e dos seus gestos emanava uma energia maligna. Vasculhou os bolsos do proprietário e retirou um relógio. Depois, os três bandidos reentraram dentro da casa e ouviram-se mais gritos, seguidos de um silêncio mais assustador do que o barulho.
O rapaz aproveitou o momento e recomeçou a andar, mas foi surpreendido pelo regresso abrupto do homem mais alto, que se dirigiu ao morto. O rapaz sentiu medo. O grandalhão observou-o, enquanto vasculhava as roupas do defunto. Sorriu quando encontrou uma chave e depois perguntou ao rapaz: qué passa? O rapaz não respondeu, mas percebeu que o ladrão era espanhol. Um dos seus companheiros saiu também de casa, trazendo uma mulher pelos cabelos, que implorava: não, não, por favor, não! O homem enorme olhou para o rapaz e riu-se, e depois perguntou: hay visto una mujer morrer? O rapaz respondeu: sim. A minha mãe. O energúmeno soltou uma gargalhada e perguntou-lhe: como hay morrido tu pobre madre? O rapaz contou-lhe: morreu lá em cima, em São Vicente de Fora, na igreja. Executando uma mímica maldosa, o bisonte benzeu-se e murmurou: paz à su alma... Pero, esta vai gozar mucho más que tu madre... Aproximou-se da mulher, agarrou-a pela nuca e depois ordenou ao seu subordinado: leva-la!!! O outro riu e acatou a ordem, mas antes aconselhou-o, apontando na direcção do rapaz: matá-lo. Muertos no hablam con soldados... O homem mais alto deu nova gargalhada, aproximou-se do rapaz e perguntou: chico, quieres morrer? O rapaz disse que não. O matodonte agarrou-o pelo cachaço, levou a mão ao cinto e empunhou uma faca, que depois lhe encostou à garganta. A mi me gustan los chicos... Apesar do medo, o rapaz disse: eu só queria água... O bandido, ao ouvir falar em água, pensou uns segundos». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT