Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Permanecia uma hora no seu
gabinete, preparando a aula de clínica geral que ministrou na Escola de
Medicina todos os dias de segunda a sábado, às oito em ponto, até à véspera da
sua morte. Era também um leitor atento das novidades literárias que lhe mandava
pelo correio o seu livreiro de Paris, ou das que lhe despachava de Barcelona
seu livreiro local, embora não acompanhasse a literatura da língua castelhana
com tanta atenção quanto à francesa. De qualquer forma nunca as lia pela manhã
e sim depois da sesta durante uma hora, e à noite antes de dormir. Ao deixar o
gabinete fazia quinze minutos de exercícios respiratórios no banheiro, defronte
da janela aberta, respirando sempre para o lado em que cantavam os galos, que
era onde estava o ar novo. Depois tomava banho, cuidava da barba e engomava o
bigode num ambiente saturado de água-de-colónia da legítima de Farina
Gegenüber, e se vestia de linho branco, com colete e chapéu mole, e botinas de
cordovão. Aos oitenta e um anos conservava o jeito despreocupado e o espírito
festivo de quando voltou de Paris, pouco depois da epidemia grande do cólera
morbo, e o cabelo bem penteado com o repartido no meio continuava igual ao da
juventude, salvo pela cor metálica. Tomava café em família, mas com um regime
pessoal: uma infusão de flores de absinto maior, para o bem-estar do estômago,
e uma cabeça de alho cujos dentes descascava e comia um por um, mastigando-os
com método em fatias de pão caseiro, para prevenir os sufocos do coração. Só em
raras ocasiões não tinha depois da aula algum compromisso relacionado com as suas
iniciativas cívicas, ou com suas milícias católicas, ou com as suas promoções
artísticas e sociais.
Almoçava quase sempre em casa,
fazia uma sesta de dez minutos sentado na varanda do quintal, ouvindo em sonhos
as canções das criadas debaixo da copa das mangueiras, ouvindo os pregões da
rua, o fragor de motores com o fedor de óleos da baía, cujos eflúvios
esvoaçavam por dentro da casa nas tardes de calor como um anjo condenado à
podridão. Depois lia durante uma hora os livros recentes, em especial romances
e estudos históricos, e dava lições de francês e de canto ao louro doméstico
que há anos era uma atracção local. Às quatro saía para visitar os doentes, depois
de tomar uma grande caneca de limonada com gelo. Apesar da idade, resistia à
ideia de receber os pacientes no consultório, continuando a atendê-los nas respectivas
casas, como sempre tinha feito, desde os tempos em que a cidade era tão
doméstica que se podia ir a pé a qualquer lugar. Desde que voltara da Europa
pela primeira vez andava no landô familiar com dois alazões dourados, mas
quando este se tornou imprestável trocou-o por uma vitória de um cavalo só, e
continuou a usá-la sempre com certo desdém pela moda, nessa época em que as
carruagens começavam a desaparecer do mundo e as únicas que ainda perduravam na
cidade só serviam para levar turistas a passeio e coroas ao cemitério. Embora
se negasse à reforma, estava consciente de que só o chamavam para atender a
casos perdidos, mas considerava que isso também era uma forma de
especialização. Era capaz de saber o que tinha um doente só pelo seu aspecto, e
cada vez desconfiava mais dos medicamentos comerciais e via com alarme a vulgarização
da cirurgia. Dizia: o bisturi é a prova maior do fracasso da medicina. Achava
que dentro de um critério estrito todo o remédio era veneno, e que setenta por
cento dos alimentos correntes apressavam a morte. De qualquer maneira,
costumava dizer em classe, a pouca medicina que se sabe só a sabem alguns
médicos. Dos seus entusiasmos juvenis tinha passado a uma posição que ele mesmo
definia como um humanismo fatalista: cada qual é dono da sua própria morte, e a
única coisa que podemos fazer, chegada a hora, é ajudá-lo a morrer sem medo nem
dor. Mas a despeito dessas ideias extremadas, que já eram parte do folclore
médico local, seus antigos alunos continuavam a consultá-lo mesmo quando já
eram profissionais estabelecidos, pois reconheciam nele o que então se chamava
olho clínico». In Gabriel García Márquez, O Amor nos Tempos de Cólera, 1985,
Publicações dom Quixote, 2002, ISBN 978-972-200-032-1.
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