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e jdact
«(…) No tampo da
secretária de Tarcisio amontoava-se uma pilha de papéis à espera de deliberação
ou despacho que justificavam a famosa burocracia vaticana. Permaneceram em
silêncio durante uns momentos, segundos constrangedores que pareceram minutos.
O americano pigarreou por fim, para aclarar a garganta. Era de esperar que
fosse ele a iniciar a conversa. O…, o…, Obrigado por me con…, con…, con…, ceder
es…, es…, esta audiência, Eminência. Quando o cardeal-arcebispo de Nova Iorque
faz uma recomendação por escrito, é minha obrigação dar-lhe ouvidos. Não tem de
agradecer, proferiu Tarcisio, numa voz baixa e desinteressada, a roçar o
gélido. A que devo a sua visita? John Scott obrigou-se a parar de bater
freneticamente com o pé no chão e abriu o dossier. Três folhas caíram no chão
alcatifado como se quisessem fugir dali. Ele próprio seguir-lhes-ia o intento se
pudesse. Precisava de alinhavar bem as ideias, pois transmiti-las ia ser um
problema, por si só. Pe…, peço des…, culpa, escusou-se o jornalista,
levantando-s para apanhar as folhas foragidas.
Controlou, finalmente, a situação
e tornou a sentar-se. Disse que o motivo da visita se prendia com um pedido,
requerimento talvez fosse a designação mais correcta, que desejava fazer a sua Eminência,
o Cardeal Secretário de Estado. O piemontês olhava fixamente para um papel que
tinha em mãos e parecia nem sequer estar a prestar atenção ao que o jornalista lhe
dizia. A verdade era bem diferente. Nada escapava ao falcão salesiano que
superintendia os destinos da Igreja. John continuou na sua gaguez incorrigível.
No âmbito de uma investigação que estava a fazer, gostaria que a Secretaria de Estado
lhe concedesse autorização para visitar um edifício. Hesitou antes de fazer o
pedido e fê-lo de cabeça baixa como se quisesse ser poupado à reacção do homem
de Deus que tinha à sua frente. – Eu…, eu…, desejava vi…, si…, si…, tar o Tor…,
Torreão Ni…, co…, lau…, Nicolau V.
Tarcisio levantou o olhar do
papel pela primeira vez e dirigiu-o a um John Scott que se pudesse tornar-se-ia
invisível, a mão direita tremia, dominada pela vergonha. Está fora de questão.
Pedido recusado, limitou-se a dizer o prelado. Infelizmente, John Scott já
contava com aquela decisão, sem sequer um pedido de elucidação sobre as razões
de pretensão tão inadequada; apenas um não liminar, sujeito a uma única interpretação.
John insistiu na relevância de
tal consentimento, antecipando o mesmo desfecho. Mudaria de estratégia quando
esgotasse todas as possibilidades. Segundo as minhas informações, o senhor é um
jornalista versado em investigações económicas. A folha para onde Tarcisio
olhava era um sumário das habilitações de John Scott, provavelmente, visto,
revisto, acrescentado, riscado, até à versão final que estava na mão do
Secretário. John confirmou. Era verdade. Não vejo o que possamos ter de
interessante no Torreão Nicolau V que mereça a sua atenção.
John respirou fundo e,
mentalmente, decidiu que estavam esgotadas todas as possibilidades de uma
autorização com base na confiança ou mesmo no currículo. Chegara a hora de
mudar de estratégia e passar ao ataque. Abriu o dossier e entregou ao secretário
uma folha. O piemontês pousou o currículo do americano e ficou pálido assim que
examinou o que John lhe passara. Como obteve isto? John registou o facto de o
secretário nem sequer ter contraditado a autenticidade do documento, apesar de
se tratar de uma fotocópia.
Não…, não es…, es…, tou auto…, ri…,
zado a re…, re…, velar a iden…, identidade da…, da…, da minha fonte, declarou o
jornalista com alguma autoridade, ainda que os nervos lhe enriçassem a pele por
debaixo da roupa. Essas fontes são muito convenientes. Arvoram-se fazer o papel
de historiadores com fontes não identificadas. Não…, não sou historiador, Emi…,
Eminên…, Eminência. Pois não, longe disso. Mas quer fazer história. O dever de
um jornalista é para com a verdade, contrapôs John. Era essa a obrigação dele e
dos seus colegas. Explicou também que tinha reunido elementos mais que
suficientes para publicar a história mas gostaria de conhecer a versão dos
responsáveis pelo Torreão Nicolau V. Le…, levo muito a…, a…, a sério o meu…,
meu…, trabalho, Emi…, nência.
Tarcisio sabia muito bem quem
tinha à sua frente, por isso o recebera. Uma simples recomendação escrita do
cardeal-arcebispo de Nova Iorque não garantia a ninguém qualquer audiência com
o número dois da Igreja Católica Apostólica Romana. Mas um telefonema, a meio
da noite, desse mesmo prelado, a avisar que um jornalista possuía cópias de
documentos autênticos do Istituto per le Opere di Religione, o famígero banco
extraterritorial do Vaticano, que ficava num edifício desconhecido do comum dos
mortais no Torreão Nicolau V, era motivo mais que suficiente para que esse
encontro acontecesse. O papel que segurava nas mãos confirmava o que Timothy
lhe dissera. John prosseguiu a sua explanação entre sílabas repetidas. A Fondazione Donato per la lotta
dei bambini con leucemia, como sua Eminência podia ver na cópia
que segurava, tinha um activo de mais de quarenta milhões de euros. Os
movimentos estavam perfeitamente documentados: depósitos astronómicos,
avultados débitos, desde 1982, e juros bonificados de nove por cento. Sim,
estou a ver, interrompeu Tarcisio, secamente». In Luís
Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.
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