Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Esta penetração da
Literatura num campo de estudos que aparentemente pertence mais aos domínios da
Educação, da Psicologia e da Sociologia, não significa que a Literatura teria
solução que os outros campos de competência não possuem. Seu papel é outro. A
literatura suscita questionamentos, fornece lenha para aquecer a reflexão sobre
problemas, talvez para discernir na colocação desses problemas quais são as
falsas e quais são as boas perguntas, o que o aproxima bastante da Filosofia, como
salta aos olhos ao longo deste projecto até a Bibliografia (Tavoillot e Deschavanne,
Ricoeur, Agamben, Wunemburger, Kowan que sintetiza a utopia de Agambén–Lyotard-Deleuze
sobre a infância, além de Pierre Bayard que proporciona surpreendentemente a
possibilidade de imaginar a infância como esta tríade; Philippe Sabot que
defende como Bayard a tese de um pensamento virtual da Literatura). Os modelos
elaborados pelos literários a partir das obras de arte providenciam uma delimitação,
traçando as fronteiras do não dito, do impossível de dizer, circunscrevendo
vazios que as Ciências Humanas não devem se apressar a preencher arbitrariamente.
Uma visão prospectiva do objecto de estudo, uma infância não já catalogada: tal
será a principal contribuição desta pesquisa. Não está garantida que ela esteja
na pasta dos educadores, cientistas sociais, encarregados das políticas educativas
do começo do terceiro milénio. Convém lembrar que a Literatura já foi procurada
como interlocutora de alto gabarito por grandes personalidades do século XX
como Sigmund Freud, Gaston Bachelard, Jean-Paul Sartre, Pierre Bourdieu...
A escritora brasileira Lya Luft
tem a nossa preferência entre os bons autores de ficções autobiográficas. Assim
como a obra instigante da francesa Amélie Northomb (pense, por exemplo, à Biografia
da fome), suas obras não pertencem como tais à Literatura infanto-juvenil. Seus
narradores protagonistas são infantes, sim, mas pensam grande e ambicionam ser
escritores à imagem de sua autora. Este duplo traço e destino narrativo
aparenta a escritora gaúcha a outros produtores de textos estrangeiros: Jacques
Ferron (canadense), Nathalie Sarraute (francesa), Marguerite Duras, Jean-Paul
Sartre, Georges Perec, Patrick Modiano. Propomos assinalar entre estes
escritores estrangeiros e Lya Luft convergências e divergências.
Este projecto investigará as
variantes estruturais da identidade e da socialização nos narradores
pré-adolescentes das ficções autobiográficas de Lya Luft à luz da hipótese de
um pensamento virtual singular da Literatura defendida no século XX por Sigmund
Freud, Marcel Proust, Filósofos da Arte, e hoje pelo professor Pierre Bayard,
da Universidade de Paris. Partindo disto, a pesquisa destacará a contribuição
em valor cognitivo que se descobre na trilogia da autora gaúcha publicada em
2004 pela Editora Record: depois da sua respectiva primeira edição em 1996 (O
rio do meio), em 1999 (O ponto cego), em 2002 (Mar de dentro). Nas três obras,
serão analisadas por um lado a ontologia do ser criança e por outro lado as
suas relações com a alteridade (o social, os artefactos, a natureza, o
transcendente). Serão também apresentadas as circunstâncias socioculturais de
emergência da forma autobiográfica escolhida pela autora. Pois tal forma, além
de ter uma história, se revela um quadro de expressão onde a criança fictícia
pode ocupar uma posição de primeiro plano em fala e acção, sobretudo pelo
diálogo interior. Neste foro interno, ela sonha, pensa por conta própria, pesa
os motivos de suas decisões, avalia criticamente os dizeres e fazeres dos adultos,
enfim se libera do adulto-centrismo dominante na vida empírica. É um truísmo
que a singularidade de uma obra de criação encontra-se melhor ressaltada
mediante o cotejo com obras de feição aparentada.
Por este motivo, todas as vezes
que será necessário, as narrativas de Lya Luft serão confrontadas com os
escritos autobiográficos de ilustres autores franceses e canadenses envolvidos
num empreendimento similar: com Enfance (1983) da francesa Nathalie Sarraute,
com L´amélanchier (1970) do canadense Jacques Ferron. São ficções
autobiográficas, cujo respectivo narrador é um personagem criança empenhado no
duplo processo de autoidentificações e de socializações, e preocupado com o acto
de escrever. Pela comparação entre textos de cultura diferente, penetramos no
campo de uma interculturalidade susceptível de trazer um conhecimento mais
universal e mais nuançado da identidade-criança, de lastrar uma definição mais
criteriosa do aporte de Lya Luft como biógrafa e escriba da infância». In
Sébastien Joachim, A invenção da infância nas narrativas autobiográficas de Lya
Luft, Anais do IV Colóquio Internacional Cidadania Cultural, diálogos de
gerações, 2009, Editora Eduepb, 2009, ISBN 217-6590-1.
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