terça-feira, 20 de agosto de 2019

Arquivo Secreto do Vaticano. Coordenação Geral de José Eduardo Franco. «… cristãos em tantos significantes religiosos arquetípicos (templos, ritos, sacerdócio, sacrifício) com base numa analogia que lhes permitia ter parte, desde sempre, no significado salvífico cristão»

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Expansão Portuguesa. Oriente
«(…) Por outro lado, não seria decerto fácil encontrar um equivalente da Filosofia em todos os povos que a primeira globalização trouxe ao contacto com o cristianismo. De modo que as categorias de pré-compreensão a que, espontaneamente, o missionário fará apelo para enquadrar o anúncio cristão, na falta (e mesmo não só na falta) de um contexto filosófico, serão precisamente as da religião, que acaba assim por funcionar como o culturema universal mais conatural à maturidade do cristianismo. Se lhe viesse a faltar esse caminho mais curto para o Evangelho, o missionário ficaria mesmo eventualmente desconcertado. Assim se sentia frei João Santos na sua missão à Etiópia Oriental (Évora, 1609): não adoram a Deus nem têm ídolos a que adorem, nem imagens, nem templos, nem usam sacrifícios. E assim, dificultosamente se convertem nem aceitam a lei de Cristo que muitas vezes lhes pregamos. Grande parte do dinamismo missionário que perpassa esta documentação radica precisamente na possibilidade de enxertar os sacramentos cristãos em tantos significantes religiosos arquetípicos (templos, ritos, sacerdócio, sacrifício) com base numa analogia que lhes permitia ter parte, desde sempre, no significado salvífico cristão.
Ora esta consideração parece paradoxal, quando confrontada com uma sombra que atravessa toda a nossa documentação relativa à China. O Documento nº 497, por exemplo, é uma carta do Último Jesuíta Português na Corte Chinesa, missionário em Pequim havia vinte e nove anos, a recorrer de uma pena de suspensão a divinis a que se expusera juntamente com outros três ex-jesuítas, por conivência com uma cerimónia chinesa (Ko teu) que seria por sua intrínseca natureza, supersticiosa… Referimo-nos à memória da condenação dos ritos chineses. A questão nunca deixou de preocupar todas as sucessivas levas de missionários e neófitos ou clérigos indígenas. Em 1806, ano seguinte ao do falecimento do jesuíta, o padre Georges d’Alary, destinatário da carta constante do Documento nº 774, compunha durante a sua estada em Macau umas apreciadas instruções para lidar com as susperstições chinesas. Com toda a probabilidade, são essas instruções que constituirão o grosso do manual da matéria, intitulado Documentos da recta razão (…) coligidos para uso dos alunos chineses e vietnamitas, bem como dos catequistas em geral, editados por monsenhor Jean-Louis Taberd, bispo de Isaurópolis. O que estava em causa era, além da adopção de termos religiosos (a começar pelo próprio nome de Deus) extraídos dos clássicos chineses, o dever de renunciar à idolatria. À sensibilidade nossa contemporânea, em que o político e o religioso se distinguem à saciedade, o argumento dos jesuítas, isto é, da relevância cívica, e não propriamente religiosa, de ritos gregários ligados ao culto dos antepassados e do imperador, pode colher bastante bem. Mas o mesmo não aconteceria com os fiéis chineses, a quem eles quereriam poupar desnecessárias rupturas culturais. Por outro lado, do ponto de vista político, seria inevitável, mais cedo ou mais tarde, a ruptura entre eles e um Império idólatra, um poder absoluto caucionado por uma idolatria ou, quanto mais não fosse, por um equívoco que consistia em expressar culturalmente a pertença ao mundo. Os gestos da religião, numa mente cristã, adquirem um alcance radical e são reservados para exprimir a pertença do homem ao seu horizonte último, o Céu, e não ao mundo. Sede religiosos, sim, mas para com Deus…, apelava um apologeta do século III aos seus concidadãos. E este apelo é tanto mais significativo quanto o contexto em que nos aparece, a modo de premissa irrenunciável, é o de uma tentativa de provar a lealdade cívica dos cristãos, pois acrescenta: … se quereis que Ele seja propício ao Imperador». In José Eduardo Franco (Coordenação Geral) Arquivo Secreto do Vaticano,Archivio della Nunziatura in Lisbona, Centro de Estudos Damião de Góis, Projecto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2010, POCI 2010, Esfera do Caos Editores, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-680-032-1.

Cortesia de EsferadoCaos/JDACT