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«Desde
o tempo de Alexandre Herculano que a inexistência de pintura portuguesa medieval
causa algum desconforto aos estudiosos da identidade nacional. Esta inquietude
resulta da hipervalorização da pintura no contexto das artes plásticas e da
ideia romântica de que um povo tem na arte a melhor manifestação da sua alma colectiva, um pensamento
alimentado tanto por republicanos reaportuguesadores (Ramos, 1994) como por
ideólogos do Estado Novo. Os mais pessimistas, de ontem e de hoje, encontraram
aqui uma prova do crónico desinteresse dos portugueses pela arte e pela
cultura, considerando que não se produziu pintura durante a Idade Média por
bisonharia e desafecto pelas artes. É certo que a descoberta dos Painéis
de S. Vicente, em 1883, eliminou parte dessas angústias e retirou ímpeto
às sentenças lapidares acerca do enraizamento do culto da ignorância em terras
portuguesas. Se os alemães tinham um Dürer ou um Cranach, os espanhóis um
Velázquez ou um Goya, os italianos um Rafael ou um Ticiano, os portugueses
lograram resgatar Nuno Gonçalves das brumas da memória e rapidamente o
integraram no restrito leque de imortais da nação, colocando-o a par de Camões,
consumando-se assim, patrioticamente, o aforismo horaciano ut pictura poesis.
Embora os painéis de Nuno
Gonçalves deixassem os intelectuais portugueses menos constrangidos no cotejo
com os pares de outras nações, subsistiam várias dúvidas acerca das origens
deste pintor, da sua portugalidade,
da sua herança e da existência de uma Escola Portuguesa de pintura. Estas e
outras questões adensaram a lenda em torno deste pintor de Afonso V, dando
origem às teorias mais extravagantes. Agarrando-se, com unhas e dentes, aos
conceitos românticos de arte e de artista, alguns autores acentuaram a
genialidade de Nuno Gonçalves, apresentando-o como um autodidacta iluminado ou
como um pintor formado lá fora,
incensando-o no altar universal dos grandes mestres. Outros autores adiantaram
explicações exógenas assentes em fontes históricas, supostamente mais
verosímeis. Por exemplo, o destaque dado por autores como Joaquim Vasconcelos
(1929) à presença de Jan Van Eyck em Portugal, integrado na embaixada
borgonhesa que permaneceu entre nós de Dezembro de 1428 a Outubro de 1429,
tendo por missão pintar o retrato da infanta dona Isabel, futura mulher de
Filipe, o Bom, da Borgonha, foi
considerado argumento suficiente para se ver aqui a génese da pintura
portuguesa primitiva.
Por outras palavras, há um século
o despontar da pintura portuguesa primitiva era justificado pela imanência de
um génio isolado ou pelo contacto,
quase místico, com um nome sagrado da História da Arte. Eis, pois, a essência
das duas principais teorias destinadas a explicar, simultaneamente, o
aparecimento de um artista da craveira de Nuno Gonçalves e a insipiência de uma
tradição pictórica anterior a ele. Embora continuem a subsistir vários
partidários destas vetustas teorias, é certo que os argumentos invocados em seu
apoio se revelam cada vez mais débeis. Neste texto pretendemos demonstrar que
várias das questões levantadas a respeito da pintura medieval portuguesa foram
mal colocadas, dando origem a teorias frágeis e inconsequentes. A nossa
intenção consiste em destacar os múltiplos sinais da existência da prática
pictórica entre nós, sobretudo a partir dos finais do século XIII, tentando pôr
cobro à ideia de que a pintura em Portugal só começou com Nuno Gonçalves.
Por outro lado, pretendemos
mostrar que a actual preeminência atribuída à pintura no contexto das artes
plásticas resulta de um preconceito moderno, não aplicável à Idade Média, o que
nos tem impedido de ver, e valorizar, outras formas de produção de imagens
bidimensionais que nesse período eram consideradas bastante mais importantes.
Durante a Idade Média, de uma
maneira geral, perdurou uma sobrevalorização das artes liberais sobre as artes
mecânicas. Na classificação tradicional das ciências, herdada de Marciano
Capela, as artes liberais eram as actividades intelectuais dependentes de sete
disciplinas escolares básicas: a Gramática, a Retórica e a Dialéctica, que
formavam o trivium, e a
Geometria, a Aritmética, a Música e a Astrologia, que constituíam o quadrivium. Actividades que
implicassem um trabalho manual eram integradas nas artes mecânicas, o que
incluía todo o tipo de trabalho do mundo do campo, do mar e dos ofícios
industriais. Dentro desta óptica os artistas desenvolviam actividades
mecânicas, no sentido em que realizavam as suas obras manualmente, seguindo
determinadas regras e conhecimentos. De um ponto de vista objectivo, os
artistas eram considerados artesãos, tal como os alfaiates ou os tanoeiros.
Mesmo a ênfase colocada por certas ordens monásticas na necessidade de o monge
ocupar parte do dia com trabalho manual, como testemunha a célebre máxima
beneditina ora et labora,
resulta mais do combate à ociosidade do que de uma verdadeira valorização do
trabalho manual, situando-o num patamar inferior ao das artes liberais e,
sobretudo, muito abaixo do Opus Dei».
In
Luís Urbano Afonso, Em Demanda da Pintura Medieval Portuguesa (1100-1400),
ANTT, Primitivos Portugueses (1450-1550), O
século de Nuno Gonçalves, edição J. A. Carvalho, Lisboa, Athena, 2010.
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