jdact
Porto
de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748
«(…) Em
Triana todos sabem que sou sua neta. Riu. Os dentes brancos contrastaram com a
tez escura, igual à de sua mãe, igual à de seu avô. Quem se atreveria? A luxúria
é cega e ousada, menina. São muitos os que arriscariam a vida para ter-te. Eu só
poderia vingar-te, e não haveria sangue suficiente com que remediar essa dor. Lembra-o
sempre, acrescentou dirigindo-se à mãe. Sim, pai, respondeu esta. Ambas
esperaram uma palavra de despedida, um gesto, um sinal, mas o cigano, hierático
na sua esquina, não acrescentou nada mais. Ao final, Ana tomou a filha pelo braço
e deixaram a casa. Era uma manhã fria. O céu estava fechado e ameaçava chuva, o
que não parecia ser impedimento para que as pessoas de Triana se dirigissem à
igreja de São Jacinto para celebrar a bênção das candeias. Também eram muitos
os sevilhanos que queriam juntar-se à cerimónia e, com os seus círios às
costas, cruzavam a ponte ou venciam o Guadalquivir a bordo de algum dos mais de
vinte barcos dedicados a levar gente de uma margem à outra. A multidão prometia
um dia proveitoso, pensou Ana antes de recordar os temores de seu pai.
Virou o rosto para Milagros e viu-a andar erguida, arrogante, atenta a tudo e a
todos. Como corresponde a uma cigana de raça, reconheceu então, sem poder
evitar um esgar de satisfação. Como não iam reparar na sua menina? Seu
abundante cabelo castanho caía-lhe pelas costas até misturar-se com as longas franjas
verdes do lenço que levava sobre os ombros. Aqui e ali, entre o cabelo, uma
fita colorida ou uma pérola; grandes brincos de prata pendiam das suas orelhas,
e colares de contas ou de prata saltavam sobre os seus peitos jovens, presos no
amplo e atrevido decote da camisa branca. A saia azul cingia-se à sua delicada
cintura e chegava quase até ao chão, sobre o qual apareciam e desapareciam seus
pés descalços. Um homem a olhou de soslaio. Milagros percebeu-o no mesmo
instante, felina, e virou o rosto para ele; as cinzeladas feições da moça se
suavizaram, e as suas bastas sobrancelhas pareceram arquear-se num sorriso. Começamos
o dia, disse a mãe.
Leio-te a sorte, rapagão? O
homem, forte, fez menção de seguir o seu caminho, mas Milagros lhe sorriu
abertamente e se aproximou dele, tanto que os seus peitos quase o roçaram. Vejo
uma mulher que te deseja, acrescentou a cigana, olhando-o fixamente nos olhos. Ana
chegou à altura de sua filha a tempo de ouvir suas últimas palavras. Uma mulher…
Que mais podia desejar um indivíduo como aquele, grande e sadio, mas
evidentemente só, que levava nas mãos uma pequena vela? O homem hesitou alguns
segundos antes de fixar-se na outra cigana que se havia aproximado dele: mais
velha, mas tão atraente e altiva como a moça. Não queres saber mais? Milagros
recuperou a atenção do homem ao mesmo tempo que se aprofundava nuns olhos em
que já havia percebido interesse. Tentou pegar sua mão. Tu também desejas essa
mulher, não é verdade?
A cigana notou que sua presa começava
a ceder. Mãe e filha, em silêncio, coincidiram: trabalho fácil, concluíram
ambas. Um carácter acanhado, tímido, o homem havia tentado esconder o seu olhar,
enfiado num corpanzil. Certamente havia alguma mulher, sempre havia. Só tinham
de animá-lo, insistir em que vencesse essa vergonha que o reprimia. Milagros
esteve brilhante, convincente: percorreu com o dedo as linhas da palma da mão
do homem como se efectivamente lhe anunciassem o futuro daquele ingénuo. A sua
mãe contemplava-a entre sentir-se orgulhosa e divertir-se. Obtiveram um par de
quartos de cobre pelos seus conselhos. Depois Ana tentou vender-lhe algum
charuto de contrabando. Pela metade do preço das tabacarias de Sevilha,
ofereceu-lhe. Se não queres charutos, também tenho pó de tabaco, da melhor
qualidade, limpo, sem terra. Tentou convencê-lo abrindo a mantilha com que se
cobria para mostrar-lhe a mercadoria que levava escondida, mas o homem limitou-se
a esboçar um sorriso bobo, como se mentalmente já estivesse cortejando aquela a
que nunca se havia atrevido a dirigir a palavra.
Durante todo o dia, mãe e filha moveram-se
entre a multidão que se deslocava do Altozano, pelos arredores do castelo da
Inquisição (maldita) e da igreja de
São Jacinto, ainda em construção sobre a antiga ermida da Candelária, lendo a
sorte e vendendo tabaco, sempre atentas aos oficiais de justiça e às ciganas
que furtavam os desprevenidos, muitas delas pertencentes à sua própria família.
Ela e a sua filha não necessitavam correr esses riscos e não desejavam ver-se
envolvidas em alguma das muitas altercações que se produziam quando flagravam
alguma: o tabaco já lhes proporcionava ganhos suficientes». In Ildefonso Falcones,
A Rainha Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand
Editora, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.
Cortesia BertrandE/JDACT