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Conclave
26 de Agosto de 1978
«(…) A
diferença é a indiferença com que agora olha para certas provocações que Ele
nunca hesita em lhe enviar. Seja um pequeno sinal, ou uma grande revelação,
esse velho que aqui se senta sozinho na companhia do jornal entende-os bem. Ao
contrário do comum dos mortais, ele não teme a Deus. Muitas almas pereceram às
mãos ou às ordens desse velhinho de bengala, que tenta fazer parecer que a
bengala está presente apenas por uma questão de imagem, quando a verdade é que
já não consegue dar um passo sem ela. O tempo é implacável para todos, e não
deixa ninguém de fora. Seu assistente não se encontra nas redondezas, o que
permite especular sobre o seu paradeiro. Decerto, está resolvendo assuntos do
interesse do idoso, em algum ponto dentro ou fora do país, quaisquer que sejam
a localização das matérias em questão, dos assuntos em cima da mesa. Apesar de
denominarmos o homem ausente de assistente, ele é aquilo a que vulgarmente se
chama secretário pessoal. Todos os poderosos os têm, incluindo o papa; e bem
podemos dizer que esse homem sentado na cadeira de ferro da esplanada da villa
tem tanto poder quanto o papa, ou até mais.
Há alguns
anos, poderia dar-se ao luxo de acender um charuto e deliciar-se com ele até a
consumição total, lendo o jornal e lançando longas baforadas para o ar. Hoje,
contenta-se apenas com a leitura do diário, já que os pulmões não mais permitem
veleidades tabagistas. Deus, aos poucos, vai-lhe tirando todos os prazeres
terrenos. Uma tosse roufenha e súbita invade a calma da noite quente e abafa o
desejo tentador. Pode muito bem resistir a essas tentações da carne e da mente.
Outras coisas o preocupam, e não é homem de se preocupar com miudezas; no
entanto, um lema o acompanha desde sempre: tudo tem solução. Perdido num
turbilhão de pensamentos, não dá pela presença sorrateira de uma serviçal, que
traz um telefone na mão. Senhor?
Ela repete
o chamamento à falta de resposta. Sim, Francesca. Diga. Parece acordar de um
sonho. Telefone para o senhor. A empregada retira-se assim que entrega o
aparelho ao patrão, deixando-o à vontade para cuidar das suas questões, fossem
elas quais fossem, pois não ousava meter-se na vida dele. Pronto, anuncia o velho
com voz forte, denominador comum do controle: não há dúvidas quando se ouve o
seu timbre duro; é ele quem manda.
Reconhece
do outro lado a voz serena do assistente, que transmite os dados relativos à
missão. Ao contrário do patrão, a voz dele é monotonamente monocórdica,
relatando a ladainha com precisão e competência, valores herdados do velho que
escuta. Sabe como ele gosta de tudo bem explicado e com sucinta celeridade; não
há necessidade de usar dez palavras quando três bastam, como fazem certos
escritores. Muito bem. Pode voltar. Vamos monitorar tudo daqui. Mais alguns
segundos de silêncio entrecortados pelos zunidos reproduzidos pelo fone. Ele
fará um bom trabalho. Não será difícil localizar Marius Ferris, conquanto haja
exactamente como ordenei: na rectaguarda... Fico à sua espera.
Um clique
no botão e a chamada internacional é desligada, cortando a união virtual entre
dois países distintos, uma linha invisível que permite a passagem das vozes e
dos dados. Põe o aparelho em cimo da mesa, para logo voltar a pegar nele. Agora
também tem esses repentes: esquece, momentaneamente, o que devia fazer a
seguir. Uma espécie de branco que passa pela cabeça, toldando o raciocínio
lógico e frio a que está apegado. Por enquanto não se revelou prejudicial,
manifestando-se apenas no cómodo lar, poucas vezes por mês. Mas sabe que é uma
questão de tempo, até que o manto branco se demore, se instale e se apodere.
Quando? Não saberá dizer. Meses, anos..., é uma incógnita. É a vingança da vida
sobre nós. Guarda sempre o conhecimento para si; não o reparte nunca com
ninguém.
Faz nova
ligação, rapidamente completada. Sabe quem é o interlocutor que atende, pois só
ele está autorizado a fazê-lo. Geoffrey Barnes. Pode efectivar a neutralização
do alvo. Aguardo confirmação. E desliga sem mais palavras. Agora, sim, põe o
aparelho em cima da mesa e volta ao jornal que o aguarda. Sarah Monteiro,
chegou a sua hora». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência,
2006, ISBN 978-972-883-969-7.
Cortesia
SEmergência/JDACT