jdact
O medalhão de Ouro
«(…) Aves esvoaçam em torno das árvores pejadas de frutos coloridos e,
a um canto, um par de corvos banqueteia-se, em cima de uma meda, à vista de um
enorme sardão policromo refastelado ao sol ardente. Passa lá adiante o feitor a
cavalo e, ao centro, na grande eira, homens e mulheres com as cabeças
resguardadas por largos chapéus de palha limpam, peneiram e amontoam o grão.
Dos corpos encalorados foram-se tirando peças de roupa que se penduraram na
bifurcação dos ramos de uma árvore. O sol aperta. Um cantil de água está
suspenso dum galho. No chão uma cabacinha de vinho, para refrescar a goela e
animar os espíritos, que a jorna não é a seco. O grande ritual do vinho começa
em Setembro. September hz
dies xxx, luna xxix. Nox hz horas xij, dies uero xij... Que azáfama
vai na vinha! Um carro de bois, com uma grande dorna em cima, está parado a
meio, guardado pelo moço com seu cajado ferrado. Filas de rapazes e raparigas
vêm de todos os lados, com os cestos vindimos ao ombro, descarregar as uvas. Na
vinha, o azul dos cachos a contrastar com o verde das folhas, homens e mulheres
vindimam vergados. Há cestos de uvas por toda a parte, no chão, pequenos para
mais facilmente serem transportados. No terreiro, em volta da adega, procede-se
ao último preparo do vasilhame: uma fieira de pipas já está pronta, o tanoeiro
dá o derradeiro aperto nos aros de uma outra, enquanto dentro dos balseiros
homens de pernas nuas vão pisando a uva e debaixo do telheiro também o grande
lagar de peso e fuso geme espremendo os cachos. Escorre o sumo em sangue da bica
de pedra para o cântaro colocado numa vasilha de aduelas e logo substituído por
outro mal se enche. Tenho ainda nos sentidos o gosto e o cheiro do vinho novo, que
os da minha idade tanto gostávamos de provar com grande distúrbio das nossas barrigas.
Não tardava muito tivéssemos de ir a correr satisfazer as necessidades atrás de
uma árvore. Aflito arriar de calças, fazíamos de esguicho, numa risota pegada vendo
o cu e a grila uns aos outros. Também era assim com o pão acabado de sair do forno.
Ainda ouço vozes esganiçadas gritarem-me: pão quente, muito na mão, pouco no
ventre! Mas que bem me sabia, sobretudo aquele pão, creio que de farinhas misturadas,
a que chamavam sêmea, saboroso e perfumado, entre a rudeza da boroa e o apuro e
brancura do trigo! Identifico sensações da infância no tempo que não no espaço.
O espaço roubavam-mo com as contínuas mudanças, já que não podiam ou não queriam
tirar-me o tempo. O gosto de certos frutos, de determinada casta de uva, destes
figos, daqueles albricoques, das amoras (gostas
de amoras? Vou dizer ao teu pai que já namoras!, risadas da garotada, lembra-me
bem), dos medronhos, o perfume de algumas plantas silvestres que me habituei
a ver no monte, do rosmaninho, das estevas, do alecrim, do tomilho, do poejo, dos
orégãos, da nêveda e até da irritante arruda, esses paladares e esses aromas
sempre tiveram o condão de me transportar aos tempos da minha meninice...
Não me lembro da morre, pelo menos da morte de alguém que particularmente
me tocasse. Tinha dela notícia indirecta pelos sinais exteriores que a sua
passagem deixava nas pessoas: aqueles vultos rebuçados de luto, de onde saíam olhos
entumescidos e vermelhos de chorar, passando por mim, que me escondia nos vãos
dos portais, como figuras de pesadelo num grave silêncio que parecia ter eco, o
guaiar pungente das carpideiras que eu ouvia de longe, o dobrar soluçante do bronze
lúgubre, em ulos uivantes apenas quebrados pelo grito frio do tintinábulo. Dir-se-ia
que ela passava ao largo, sem me deixar marcas na alma. Não é por aí que me aparecem
na lembrança as primeiras pessoas individualizadas e nominalmente identificadas,
mas é relacionado com ela que isso acontece. Creio que estava numa espécie de orfanato
contíguo e não sei se dependente de um convento de franciscanos. Não me recordo
de quantos anos tinha. Assim como não sabia onde tinha nascido, também desconhecia
quando. Presumia, no entanto, que num dia vinte e sete de Julho, se aquele medalhão
que trazia ao peito tinha alguma relação com a minha pessoa, como já então me parecia
natural. Desde pequeno, muitas vezes dava comigo à noite, na cama, a afagá-lo, com
as mãos, a cismar no seu significado, até que o sono viesse diluir-me os pensamentos
com retalhos de vida que eu nunca soube aonde ia buscar. Até de dia era
frequente tentar abri-lo, mas as minhas mãos pequenas e desajeitadas não o conseguiam,
e além disso havia sempre alguém, uma pessoa idosa, que eu via sempre
alongando-se esbatida dos pés à cabeça lá muito em cima e que a meu lado
prevenia, numa voz indefinida, ou melhor, numa mistura de vozes, roucas, claras,
trémulas, distantes, próximas, como ecoando em dornas vazias: não mexas nisso!»
In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT