sexta-feira, 24 de junho de 2016

Uma Questão de Fé. A. Borges. « O destino entendeu mimar o Rei-Sol português com umas décadas de paz e dinheiro, muito dinheiro, proveniente do ouro e dos diamantes entretanto descobertos no Brasil»

jdact

João V
«Foram tempos de ouro e diamantes, grandes palácios, carruagens faustosas, música épica escrita propositadamente pelos músicos mais famosos para salas desenhadas pelos arquitectos mais aclamados. Tempos ardentes, movidos por uma fé incendiada por uma paixão, obcecada pela carne. Este caso começa nos arredores de Lisboa, à noite. Um vulto luxuosamente vestido de sedas e veludos, escoltado por dois guardas, dirige-se em passo rápido para o portão dum edifício. Bate com autoridade e logo lhe respondem. Ouve-se o chiar da porta abrindo entre risinhos femininos e palavras secretas, trocadas dos lábios para os ouvidos. O portão de ferro bate com estrondo, ecoando pela noite. E os guardas ficam do lado de fora, como os gatos que passam, e as árvores do outro lado da estrada, e o resto do reino, dormindo. Nada haveria a contar acerca deste caso, não fosse aquele homem o rei e o edifício a que acabara de recolher não um bordel, mas um convento. Estávamos no século XVIII, o das luzes. Eram tempos gloriosos nas cortes europeias. Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Holanda viviam do luxo dos seus impérios comerciais; já o povo podia entreter-se a admirar-lhes as roupas, as grandes obras, a comentar as histórias das festas reais, dos casamentos sumptuosos, dos hábitos extravagantes, das vidas mais ou menos devassas.
João V foi solenemente aclamado rei ao primeiro de Janeiro de 1707. Tinha 17 anos e muita sorte. Era o quarto rei da quarta dinastia e nem o avô, nem o tio, nem o pai, que o precederam, reinaram em circunstâncias fáceis. Entre a reconquista da independência, em 1640, as guerras com Castela, que se lhe seguiram e prolongaram durante 28 anos, as mortes, as despesas inerentes, a perda de muitos dos mais importantes bastiões do Oriente e consequente quebra de proveitos, fora problemas familiares, legais e médicos, a vida não foi particularmente fácil para João IV, nem para Afonso VI, nem para Pedro II. Aliás, também não seria fácil para o homem que sucederia a João V no trono, José, a braços com uma capital devastada por um dos maiores terramotos da História. Mas João nasceu bafejado pela fortuna. O destino entendeu mimar o Rei-Sol português com umas décadas de paz e dinheiro, muito dinheiro, proveniente do ouro e dos diamantes entretanto descobertos no Brasil, quando, perdida boa parte da Índia, Portugal se obrigava a virar atenções para outro recanto do império.
O filho varão do rei Pedro II e da sua segunda mulher, dona Maria Sofia de Neuburgo, foi o símbolo do absolutismo em Portugal, em muitos dos seus defeitos e algumas virtudes. Durante os longos 44 anos do reinado de João V, Portugal viveu alguns dos mais soberbos momentos da História e outros dos mais vis, absurdos e antidemocráticos que se há-de recordar. João terá sido o mais esbanjador e irresponsável monarca de toda a galeria nacional, mas, dizem alguns historiadores, também um homem que, como poucos, nascera para ser rei. Um mecenas das artes e das ciências, um líder capaz de tomar decisões corajosas em momentos delicados e um monarca com uma visão global para o império que lhe assegurou, por algum tempo, a sobrevivência e a prosperidade.
Ainda assim, não foram fáceis os primeiros dias do jovem rei. Havia guerra do outro lado da fronteira: a corrida à sucessão ao trono espanhol. Eram pretendentes Filipe V, apoiado pelos franceses, e o arquiduque Carlos, que tinha contado até ali com o apoio de ingleses, holandeses e portugueses, por decisão de Pedro II. João V entendeu dar continuidade ao compromisso assumido pelo pai, mesmo que o saldo para as contas nacionais fosse, até então, nada menos do que desastroso. Contudo, a sorte de João começaria logo ali, quando José, o irmão do arquiduque, morreu, deixando livre o trono austríaco. Carlos tornou-se então imperador Carlos VI da Germânia e a Inglaterra deixou de o apoiar na guerra em Espanha, para evitar que acumulasse duas coroas. As pazes foram assinadas, as tropas portuguesas a combaterem na Catalunha regressaram a casa e os depauperados cofres nacionais agradeceram não ter de suportar mais o esforço da guerra.
Com a lição aprendida, João V perderia doravante o apetite por quezílias internacionais, preferindo, antes, reafirmar a aliança com Inglaterra e concentrar atenções no Brasil. Para a aventura transatlântica, canalizou fluxos de emigrantes, apostou no aumento de quadros militares e administrativos, na cultura do açúcar e, sobretudo, na exploração do ouro. Internamente, fomentava a indústria, a arquitectura barroca, a música e a pintura. Introduziu em Portugal a ópera italiana, patrocinava artistas nacionais e mandava vir outros de fora. Tinha uma obsessão: suplantar Luís XIV de França, o Rei-Sol original, que dizia que o Estado era ele. João queria fazer palácios tão belos como os dele, dotá-los de arte ainda mais extraordinária, dar banquetes ainda maiores, e Deus sabe como João gostava de comer... Enquanto isso, patrocinava o padre voador, Bartolomeu Gusmão, que tinha feito um balão de ar quente elevar-se do chão num salão do palácio real, diante dos olhos perplexos do rei, e trabalhava agora no sonho dos sonhos: uma máquina de voar. A passarola voadora». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT