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«Trabalhar com nobreza, esperar
com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia».
In
Fernando Pessoa
«(…) E agora, perguntou, E agora, Ricardo, ou lá quem és, diriam
outros. Num relance, percebera que o verdadeiro termo da sua viagem era este preciso
instante que estava vivendo, que o tempo decorrido desde que pusera o pé no
cais de Alcântara se gastara, por assim dizer, em manobras de atracação e
fundeamento, o tentear da maré, o lançar dos cabos, que isso foram a procura do
hotel, a leitura dos primeiros jornais, e dos outros, a ida ao cemitério, o
almoço na Baixa, a descida da Rua dos Douradores, e aquela repentina saudade do
quarto, o impulso de afecto indiscriminado, geral e universal, as boas vindas
de Salvador e Pimenta, a colcha irrepreensível, enfim, a janela aberta de par
em par, empurrou-a o vento e assim está, ondulam como asas os cortinados leves,
E agora. A chuva recomeçou a cair, faz sobre os telhados um rumor como de areia
peneirada, entorpecente, hipnótico, porventura no seu grande dilúvio terá Deus
misericordioso desta maneira adormecido os homens para que lhes fosse suave a
morte, a água entrando maciamente pelas narinas e pela boca, inundando sem
sufocação os pulmões, regatinhos que vão enchendo os alvéolos, um após outro,
todo o oco do corpo, quarenta dias e quarenta noites de sono e de chuva, os
corpos descendo para o fundo, devagar, repletos de água, finalmente mais pesados
do que ela, foi assim que estas coisas se passaram, também Ofélia se deixa ir
na corrente, cantando, mas essa terá de morrer antes que se acabe o quarto acto
da tragédia, tem cada um o seu modo pessoal de dormir e morrer, julgamos nós,
mas é o dilúvio que continua, chove sobre nós o tempo, o tempo nos afoga. No
chão encerado juntaram-se e alastraram as gotas que entravam pela janela
aberta, as que salpicavam do peitoril, há hóspedes descuidados para quem o
trabalho humilde é desprezível, julgam talvez eles que as abelhas, além de
fabricarem a cera, a virão espalhar nas tábuas e depois puxar-lhes o brilho,
ora isto não é trabalho de insectos, se as criadas não existissem, obreiras
também elas, estes resplandecentes soalhos estariam baços, pegajosos, não
tardaria aí o gerente armado de repreensão e castigo, porque, gerente sendo, é
esta a sua obra, e neste hotel fomos nós colocados para honrar e glorificar o
senhor dele, ou seu delegado, Salvador, como sabemos e já deu mostras. Ricardo Reis
correu a fechar a janela, com os jornais empapou e espremeu a água do chão, a
maior, e, faltando-lhe outros meios para emendar por inteiro o pequeno
atentado, tocou a campainha. Era a primeira vez, pensou, como quem a si mesmo pede
desculpa.
Ouviu passos no corredor, ressoaram discretamente uns nós de dedos na
porta, Entre, palavra que foi rogo, não ordem, e quando a criada abriu, mal a
olhando, disse, A janela estava aberta, não dei por que a chuva entrasse, está
o chão todo molhado, e calou-se repentinamente ao notar que formara, de
enfiada, três versos de sete sílabas, redondilha maior, ele, Ricardo Reis,
autor de odes ditas sáficas ou alcaicas, afinal saiu-nos poeta popular, por
pouco não rematou a quadra, quebrando-lhe o pé por necessidade da métrica, e a
gramática, assim, Agradecia limpasse, porém o entendeu sem mais poesia a
criada, que saiu e voltou com esfregão e balde, e posta de joelhos, selpeando o
corpo ao movimento dos braços, restituiu quanto possível a secura que às
madeiras enceradas convém, amanhã lhes deitará uma pouca de cera, Deseja mais
alguma coisa, senhor doutor, Não, muito obrigado, e ambos se olharam de frente,
a chuva batia fortíssima nas vidraças, acelerara-se o ritmo, agora rufava como
um tambor, em sobressalto os adormecidos acordavam, Como se chama, e ela
respondeu, Lídia, senhor doutor, e acrescentou, Às ordens do senhor doutor,
poderia ter dito doutra maneira, por exemplo, e bem mais alto, Eis-me aqui, a
este extremo autorizada pela recomendação do gerente, Olha lá, ó Lídia, dá tu
atenção ao hóspede do duzentos e um, ao doutor Reis, e ela lha estava dando,
mas ele não respondeu, apenas pareceu que repetira o nome, Lídia, num sussurro,
quem sabe se para não o esquecer quando precisasse de voltar a chamá-la, há
pessoas assim, repetem as palavras que ouvem, as pessoas, em verdade, são
papagaios umas das outras, nem há outro modo de aprendizagem, acaso esta
reflexão veio fora de propósito porque não a fez Lídia, que é o outro
interlocutor, deixemo-la sair então, se já tem nome, levar dali o balde e o
esfregão, vejamos como ficou Ricardo Reis a sorrir ironicamente, é um jeito de
lábios que não engana, quando quem inventou a ironia inventou a ironia, teve
também de inventar o sorriso que lhe declarasse a intenção, alcançamento muito
mais trabalhoso, Lídia, diz, e sorri». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo
Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9.
Cortesia de Caminho/JDACT