sábado, 11 de junho de 2016

Memórias de Agripina. Pierre Grimal. «Descobria que o mundo que os meus olhos viam era apenas uma pequena parte de tudo o que existe. Sendo ainda uma pequena rapariga, já não era mais surpreendida…»

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O Tempo de Meu Pai
«(…) Eu também queria ter no meu pescoço ouro e pedras preciosas. Parecia-me, por mais pequena que eu fosse, a coisa mais maravilhosa do mundo e, ainda que hoje eu saiba que há bens infinitamente mais desejáveis, sou sempre sensível ao seu brilho. Prometi a mim mesma ir, quando fosse grande, interrogar os Cabiros. O que o meu pai, no decurso da sua viagem, não pôde fazer. Ele disse-nos, quando voltou, que o vento do Norte havia sido tão violento que o seu navio não pudera aportar em Samotrácia. E acrescentou: vou aproveitar para ir a Tróia. A minha mãe, não sei por que razão, pareceu irritar-se com esse projecto. Não farias tu melhor, disse-lhe ela, em pensar no que deves fazer, quando o outro..., mas ela interrompeu-se, porque Germânico franziu o sobrolho, dirigindo-nos o olhar, ao meu irmão e a mim. Mas penso que em vez disso, continuou ele, como se ela não o tivesse interrompido, não será mau que eu vá consultar os Manes dos nossos antepassados mais distantes. Talvez eles me dêem algum conselho útil. Fiquei muito intrigada com aquelas palavras. Caio assumiu um ar sério. No dia seguinte, roguei-lhe que me explicasse o que o nosso pai quisera dizer. Se tu não fosses tão pequena, saberias, começou ele, que a nossa família veio para Roma vinda do país em que nós estamos. Bom, não exactamente, mas daquela cidade de Tróia, de que ontem se falava... Pelo que ele se pôs a contar toda a Ilíada, seguida da Eneida. O seu pedagogo falava-lhe disso todos os dias, para o manter tranquilo, porque Caio adorava histórias, sobretudo aquelas em que intervinham heróis, dos quais lhe tinham dito que nós descendíamos. E depois, ele descobria que essas altas personagens, suas antepassadas, estavam sempre em contacto íntimo com os deuses e as deusas, o que o lisonjeava e parecia prometer-lhe que, quando ele fosse maior, faria a mesma coisa, teria o mesmo poder. Muitos anos mais tarde, quando ele foi imperador, pude ver que ele jamais esquecera esse sonho da sua infância, tornado, com os anos, uma certeza indiscutível.
Quando o nosso pai voltou de Tróia foi altura de deixarmos Lesbos. A minha mãe estava já restabelecida e Livila podia aguentar uma viagem. Percorríamos as costas da Ásia. A terra nunca estava distante e fazia bom tempo. Parávamos o mais frequentemente possível num porto, e eles são muitos, sucedem-se, naquela região. Essas escalas eram-me agradáveis. De cada vez que o fazíamos, com Caio e o seu preceptor, íamos a terra, e víamos o que havia para ver em todo o nosso redor. Construía-se um pouco por todo o lado, recuperavam-se os edifícios públicos meio arruinados pela antiguidade ou construíam-se de novo. Eu achava esses passeios um pouco longos e, quando regressava ao barco, o sono não se fazia esperar. Estava cansada também pela interminável tagarelice do meu irmão, que punha mil questões sobre as cenas que estavam representadas nos frontões dos templos recém-construídos ou ao longo dos pórticos. Eu ouvia o que lhe dizia o seu pedagogo e aprendi muito durante os nossos passeios a Mirina, a Sardes, a Esmirna e a outros locais célebres. À noite, sonhava com o que ouvira contar na viagem. Os Gigantes revoltados contra Júpiter, o combate dos Titãs e dos deuses eram os companheiros do meu sono. Descobria que o mundo que os meus olhos viam era apenas uma pequena parte de tudo o que existe. Sendo ainda uma pequena rapariga, já não era mais surpreendida pelas coisas do que o eram as grandes personagens, que tinham tanta ciência, mas também tanta ignorância!
Como é que se sabia, por exemplo, a história que eu acabava de decifrar num relevo: a bela Aracne, tão orgulhosa que pretendera saber tecer e bordar melhor do que a deusa Minerva? E como é que se sabia que Minerva se encolerizara e aceitara o desafio? Ambas teceram, durante dias, mas, naturalmente, Minerva ganhou-lhe. Então, para punir a imprudente, a deusa transformou-a numa aranha (um animal que eu detestava e que me fazia fugir), que jamais cessava de fazer, por todo o lado, as suas teias miseráveis e que toda a gente perseguia nos cantos poeirentos onde ela escondia a sua vergonha. Quando eu perguntava a Caio como é que se havia tomado conhecimento de tudo isso, ele respondia-me, desdenhosamente: foram os Antigos que o contaram. Mas eles, como o souberam eles? Mas pelos próprios deuses! Não sabes que os deuses nos falam, que nos transmitem oráculos?» In Pierre Grimal, Memórias de Agripina, Lyon Edições, Romances Históricos, 2000, ISBN 972-8461-51-8.

Cortesia Lyon E./JDACT