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«(…) Uma pena se caísse nas mãos brutas dum a-tâi qualquer que a pejaria
de filhos, estragaria o corpo e esfrangalharia a trança. Uns anos mais,
naquelas árduas andanças, sob a canga dos baldes, arrastando-se pelas ruas, ao
sol e à chuva, tanto no Inverno como no Verão, e seria uma sombra ou um farrapo
do que era hoje, um hino de sensualidade inconsciente e juventude. Quando ela se
endireitou, não se moveu da janelinha. Precipitar-se seria prejudicar toda e
qualquer oportunidade futura. Deixou-a partir e desceu para a dispensa, onde reclamou
um copo de água. Perguntou à criada espevitada que mais tinha conversado com
A-Leng, donde vinha aquele líquido transparente que tão generosamente matava a sede.
A criada forneceu-lhe pormenores. Assim, o Belo Adozindo soube das horas em que
invariavelmente era trazida. Não insistiu mais e saiu assobiando. Dois dias depois,
era um sábado, não almoçou em casa e na hora devida cirandou pelas cercanias, calculou
o trajecto dela e não se enganou. Avistou-a longe, equilibrando os baldes, em passo
balançado, com a desenvoltura da profissão. Plantou-se, no passeio estreito, dando-lhe
passagem livre. Ela acusou no rosto a surpresa, mas não reagiu, porque se achava
fora do seu meio familiar. Adozindo sorriu-lhe, fez-lhe uma pequena vénia a que
ela não correspondeu. Deixou-a afastar-se, sem medo do varapau, porque estava no
seu próprio terreno, e seguiu-a então.
Estava no caminho para casa, ninguém diria que a perseguia. Ela, porém,
sabia. Com o peso do varapau sobre os ombros, as mãos a segurá-lo para que não escorregasse
do seu apoio, não podendo perder a água, fruto do seu trabalho, não podia virar-se
para trás. Apenas um olhar de esguelha e o resto era pressentimento. Ela estacou,
frente à porta do tardoz da casa. Desenvencilhou-se do varapau, mas não o brandiu.
Volveu-se para ele que se aproximava, e perguntou-lhe ácida, sem elevar a voz:
que deseja de mim? É comigo que fala? Eu..., eu não desejo nada. Vou para casa.
Com voz melíflua, apontou para a porta e disse: não é para aqui que vai? Eu
também vou. É a minha casa... A jovem embatucou. Um colorido tingiu o rosto moreno.
Com viscosa gentileza, Adozindo exibiu a chave e abriu a porta. Num gesto cavalheiresco
que jamais alguém tivera para com ela, disse: faça favor de entrar, siu-tché
(menina).
Aquele siu-tché, escutado pela primeira vez e inusitado para uma aguadeira,
habituada a rudeza de trato e de palavras, enleou-a mais. Ainda hesitou, mas, nisto,
de dentro, apareceu A-Sâm, a criada espevitada. Esta não estranhou a presença do
Menino. Ele costumava, as mais das vezes, entrar pela porta do tardoz. uma escada
comunicava directamente o quintal com o primeiro andar e não tinha de incomodar
ninguém quando regressava à noite. Do que se espantou, foi da delicadeza do
Menino que permitiu que a aguadeira atravessasse a porta primeiro que ele. As faces
de A-Leng cobriam-se de intensa vermelhidão, a garganta seca. Ao desprender-se
dos baldes, entornou um bocado de água. Desculpa... Eu limpo já. Só molhara o chão,
mas para ela fora um percalço humilhante. Adozindo atalhou: não faz mal. Não
tem importância. Com o seu sorriso de matador, subiu a escada, não olhando para
trás. Mas não tão depressa que não apanhasse o comentário de A-Sâm, toda envaidecida:
o Menino é muito bem educado. Têm maneiras gentis.
Não foi preciso grudar-se à janelinha. A moça estaria assustada demais e,
se o descobrisse a espreitar, seria capaz de nunca mais ali regressar. Fora um golpe
magistral, a paciência ciar-lhe-ia a vitória final. Aproveitara bem a oportunidade
e a trança negra e coruscante, mais o corpo coleante, pertencer-lhe-iam em breve.
Nem sequer se lembrou que naquela mesma hora tinha a viúva à espera, abrasada de
cio e roída de ciúmes. Demorou-se a pentear e só então se dirigiu à porta
principal, a caminho do Baixo Monte. A-Sâm, no quintal, ignorante de todo esse enredo,
foi uma cúmplice involuntária, no desiderato do patrãozinho. Vendo A-Leng aturdida
e atribuindo isso à cortesia do Menino, pôs-se a gabá-lo, no que foi auxiliada
pelo resto da criadagem. O Menino era bom, nunca ralhava com os servidores da casa
nem tinha uma palavra desabrida. Levassem-lhe umas simples peúgas ou um copo de
água e era logo um obrigado, na boca. Não os humilhava, por serem criados». In
Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN
972-9440-80-8.
Cortesia da FOriente/JDACT