«Não há uma só linha neste texto que não seja discutível. Estou quase
certo que o António José Saraiva de 1965
teria engulhos em o subscrever. A facilidade moderna que a todos nos é
concedida de imputar a autores antigos ideias, atitudes, opções que o futuro desmonetizou
e passam a nossos olhos como etiquetas relativizadas pela História, esconde-nos
esta coisa simples e óbvia: é que tais atitudes, se tivessem existido, eram
para os seus autores caso de vida e de morte. Eram até
mais do que isso e pouco importa que autores modernos já não conheçam nem o
preço nem o sabor, nem a gravidade do que está em causa. Se Gil Vicente tivesse sido, no meio de
uma corte piedosa a quem jamais alguém se lembrou de contestar a ortodoxia,
esse incrível adepto de não sei que Deus sem transcendência nem personalidade
(posto, ainda por cima, na conta do beato Raimundo Lúlio...) não era apenas
a sua situação civil privilegiada, nem a sua fantasiosa cabeça que corriam
riscos que o autor de um ensaio sobre a Inquisição (maldita) facilmente
adivinhará, mas igualmente a totalidade do seu destino, ou para usar a
linguagem de Mestre Gil, a sua salvação. Na perspectiva de António
José Saraiva não caberia, a menos de julgar a sociedade do seu tempo
imbecil e estúpida, outra solução que a de supor Gil Vicente ou refinado hipócrita ou bobo inofensivo e inconsciente.
Mas nem A. J. Saraiva aceitaria esta conclusão, que todavia é a única
adequada às suas premissas.
De onde procede uma tão arriscada formulação das intenções espirituais
(deixo de lado as ideológicas que também dariam pano para mangas e A. J.
Saraiva mete no mesmo saco) de Gil
Vicente? António José Saraiva não é um publicista qualquer, é um escolar
responsável, capaz, formado ou sabedor das boas regras metodológicas, apostado
mesmo na tarefa grandiosa, acaso desmedida, de refazer de alto a baixo uma
historiografia literária tradicional. É necessário apreciá-lo na linha da
exigência, da claridade, do respeito pela verdade que publicamente norteiam o
seu labor, como norteiam o de outros que lhe são ou foram próximos, Óscar Lopes, Mário Sacramento, o
mais jovem Costa Dias.
A única resposta que permite salvar
afirmações tão abusivas, tão solidamente infundadas, mas pelas quais se não
pode ter a indulgência do deslize por serem filhas de um sistema e
sistematicamente renovadas a propósito de muitos, para não dizer de todos os
autores tratados (João de Barros, Camões, etc.) é a de admitir, por um
lado, a sinceridade da convicção que as dita, o que não ponho em dúvida, e por outro,
a de que essa convicção é inadequada à compreensão do nosso passado. A
tendência a interpretar o passado projectando sobre ele evidências ou descobertas
modernas não é, em si, uma fonte de abuso. Não está, de resto, ao alcance de
ninguém o poder furtar-se a uma forma de projecção que é final a que justamente
constitui o passado ao mesmo
tempo como passado e passado nosso. Mas a esta fatalidade
convém não acrescentar as que nós fabricamos por inatenção, desrespeito ou
falta de prudência metodológicas que sem eliminar o risco de erro, o podem atenuar
e com alguma humildade aproximar-nos do plausível». In Eduardo Lourenço, Destroços, O
Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Gradiva, 2004, ISBN 972-662-945-4.
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