«Fizeram
parte da mesma estratégia de fortalecimento do poder outros actos mais
conhecidos. No plano externo, a expedição ao Algarve para conquistar Faro,
Porches e Albufeira os últimos redutos muçulmanos da região, o início
das hostilidades contra o rei de Castela pela posse do Algarve e a condução da
hábil política por meio da qual conseguiu reivindicar a posse do al-Andalus ocidental, política de que
fez parte o casamento com D. Beatriz, filha bastarda de Afonso X (1253). No plano interno, a
celebração de cortes em Guimarães
em 1250, a cuidadosa política
monetária, por meio da qual afirmou com todo o vigor o seu direito de cunhar moeda e de lhe alterar o valor (1254-1255), e outros actos
administrativos, por meio dos quais demonstrou a sua força junto dos concelhos,
do clero e dos nobres. Note-se, porém, que, nestes actos e decisões, procurou
seguir uma política de acordos e concessões, evitando hostilidades inúteis,
mesmo com o rei Afonso X de Castela. São disso prova evidente os compromissos a
que chegou, por um lado, com os bispos nas cortes de Guimarães de 1250 já assustados
com uma repressão demasiado severa de abusos anteriores e, por outro, com os
representantes dos concelhos, consequentemente, com os mercadores e com os
mestres das ordens militares acerca da moeda.
Não
é impossível que estas medidas tenham sido tomadas durante um período de crise
agrícola, como propus em 1993 na História de Portugal, admitindo
que esta tivesse em Portugal precedido de uns dois anos a que se abateu sobre
Leão e Castela durante o septénio de 1255
a 1262. Tenho hoje bastantes dúvidas a este respeito.
NOTA:
Apresentei esta hipótese como explicação da lei da almotaçaria de 1253,
das decisões de Afonso III acerca da quebra da moeda em 1254 e 1255 e da
proibição da exportação de metais preciosos, panos, couros e mel em 1255.
Reflectindo melhor, não posso deixar de verificar que a lei da almotaçaria se
reduz ao tabelamento de salários e produtos manufacturados; se procurasse
remediar a alta de preços de produtos agrícolas, não deixaria de os mencionar.
O mesmo se diga acerca da proibição de exportações de 1255; também esta não significa
só por si escassez de bens agro-pecuários. Como indícios seguros da crise
agrícola restam, portanto, a menção não datada da Crónica de 1419 e a proibição de exportação de cereais
erroneamente datada de 1273. A
data desta última tem certamente de ser corrigida porque menciona o rei de
Portugal também como conde de Bolonha, o que só pode verificar-se antes do
falecimento de D. Matilde, em Janeiro de 1261. Para isso seria preciso presumir
que a data de era 1311 (ano de 1273) da cópia da lei resultasse de um erro de
leitura de era MCCCXI, em vez de MCCLX’I, por confusão de um L com um C e de um
X aspado com um X simples. Todavia, em 13 de Julho 1253, o rei não estava em
Lisboa, como se diz na cópia do documento, mas algures entre Figueiredo e Viseu.
O documento poderia, nesse caso, datar de 1255, de 1256, de 1259 ou de 1260,
tudo datas compatíveis com o período da crise castelhana. Esta decisão do rei
era lógica, para prevenir a falta de cereais no reino. Não se pode, porém, esquecer
que este documento e a menção da Crónica
não são provas suficientes só por si para admitir uma crise agrícola da
mesma gravidade da que atingiu o reino vizinho. O esclarecimento deste problema
permanece em aberto.
Seja
como for, a política de Afonso III durante os anos de 1253 a 1258 caracteriza-se pela acumulação
de numerosas medidas de carácter administrativo, entre as quais a promulgação de dezenas de forais e
aforamentos colectivos, a implantação de um sistema de cobrança que facilitava
o pagamento dos direitos régios em moeda, o estabelecimento de numerosas tendas
em Lisboa, a captação de direitos alfandegários em Vila Nova de Gaia em
concorrência com os direitos cobrados pelo bispo da cidade, o pagamento de uma
pesada dívida em dinheiro ao mosteiro de Alcobaça, o que lhe granjeava a
simpatia e o apoio da mais poderosa ordem religiosa e lhe valia fama de
honradez e rigor no cumprimento dos seus compromissos, a redacção de uma grande
quantidade de cartas de prazo de casais e herdades situados em terras reguengas,
etc. As viagens que o rei fez durante estes anos a norte do Douro, e em 1256 e 1257 na Beira, deram-lhe a conhecer directamente o estado da
propriedade régia e dos bens da coroa, nomeadamente o grau a que tinha chegado
a usurpação de direitos régios durante o ruinoso reinado de seu irmão Sancho
II.
Tudo
isto pode ser considerado, à semelhança das medidas já referidas, como a
concretização de uma política destinada a fortalecer o poder régio, neste caso
por intermédio da organização administrativa e da acumulação de rendimentos da
coroa. Como é evidente, a independência do monarca dependia em boa
medida da sua capacidade económica e financeira. Não pode, porém,
deixar de se sublinhar a coerência, a
continuidade e a variedade de domínios em que tais acções incidiram e o cuidado
posto na captação dos apoios sociais. Só depois de assim ter assegurado a
solidez material do seu poder é que Afonso III empreendeu reformas políticas
mais profundas.
A Burocracia,
1258
Sem
querer retirar às iniciativas relacionadas com os preços e a moeda um carácter
inovador no contexto português, como tem sido sublinhado, com toda a razão,
pelos autores que trataram destes factos, nomeadamente por Oliveira Marques, 1996, podemos hoje considerar a decisão
de proceder a inquirições gerais em todo o Norte de Portugal acima do Mondego
como uma medida de ainda maiores consequências no plano da organização do Estado, apesar de não ser inédita e de ter sido
também ditada por razões basicamente administrativas. De facto,
retomava um processo iniciado por Afonso II em 1220, e destinava-se, sobretudo, a evitar a usurpação dos direitos
régios, ou seja, a diminuição dos rendimentos da coroa. Também se pode notar
que a sua modernidade é amplamente ambígua, porque, se, por um lado,
representava a afirmação do Estado como juiz supremo, acima de qualquer
indivíduo privilegiado, o que era a
novidade fundamental, representava também a apropriação de poderes
públicos como poderes senhoriais do rei, ou seja, pressupunha o exercício do poder
régio numa perspectiva feudal. Mas o seu carácter sistemático, o registo por
escrito como referência jurídica, o facto de ter abrangido precisamente todas
as terras em que predominava uma organização tradicional de tipo senhorial e
nas quais passou a funcionar como instrumento demonstrativo da supremacia
régia, o contacto directo que os funcionários régios tiveram com os dependentes
das terras de regime senhorial, tudo isto fez com que as inquirições se
tornassem, na prática, um dos mais
firmes pontos de partida da centralização monárquica e do seu reconhecimento
social». In José Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio
de História Política, Revista Análise
Social, vol. XXXV, 2001.
continua
Cortesia
de R. Análise Social/JDACT