terça-feira, 19 de março de 2013

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «… quaes caminhos vão dar mais brevemente ás regiões da especiaria, quaes potentados ha lá muito ao longe pela Africa e pela Ásia a subjugar pelo terror das armas e pelo prestigio do nome portuguez»

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NOTA: De acordo com o original

«A formação de estados independentes e soberanos no meio da Europa christan, é o facto vulgar da edade média. Da dissolução do império dos Césares nasce a divisão das regiões, outrora submetidas ás águias imperiaes. O regímen feudal é a consequência necessária da falta de um principio commum, que sirva de liame aos povos romano-barbaros. Os estados compõem-se e decompõem-se, agglomeram-se e disseminam-se sucessivamente no meio d'esta fermentação moral, em que os povos modernos procuram as condições do seu equilíbrio politico. Mais tarde, porém, as nações reconstituem-se; os grandes estados absorvem as nacionalidades ephemeras, e os elementos políticos da Europa moderna agrupam-se em redor dos grandes centros da civilisação.
A França estende o nivel da unidade nacional sobre todos os estados independentes que haviam por muitos séculos retalhado o seu vasto território. Poucos estados succedem na Itália á anarchia das republicas e á multiplicidade dos principados. A Navarra e o Aragão prestam os seus brazões para servirem de novas peças ao escudo da monarchia hespanhola. Das pequenas nacionalidades, erigidas na meia edade, só Portugal consegue atravessar incólume as épocas de transformação social e de reconstituição politica da Europa, intacto quasi inteiramente o território em que arvorou uma vez a sua bandeira. Por que singular privilegio resiste a nossa terra ao movimento geral de assimilação? Porque é ella mais feliz do que o Aragão, do que a Navarra, nas Hespanhas? Do que a Borgonha, a Lorena, e a Bretanha na antiga região das Gallias? Do que a Escócia na Gran-Bretanha? Do que a Bohemia e a Hungria na Allemanha? Do que a Noruega na península scandinava?
É predilecção do acaso? Ou é decreto da Providencia? É favor da fortuna, ou necessidade da civilisação? Imagine-se já consolidada aparentemente a monarchia do mestre de Aviz; illustradas as armas portuguezas pela victoria de Aljubarrota; constituída a unidade nacional pela communidade dos sentimentos, dos esforços, dos sacrifícios, em que a final se traduz esta generosa abstracção que se chama amor da pátria. Supponhamos agora que o rei cavalleiro adormece sobre os loiros das suas victorias e que a sua irrequieta actividade lhe não aponta para Ceuta, para Tanger, como novos prémios de suas novas excursões. Dêmos que sae malaventurada a primeira expedição ás terras africanas, e que os filhos do rei popular, em vez de scismarem a verdadeira gloria, amollecem os animos e arrefecem os brios na vida effeminada dos saraus e dos festins. Não ha loiros a ceifar nas praças de Marrocos, não ha delicias intellectuaes para o infante Henrique nas asperezas do promontório sacro; não ha cavalleiros que troquem os ócios da casa do infante pelas aventurosas navegações n'esse temeroso Oceano, n'esse mare tenebrosum que a phantasia meticulosa dos antigos povoava de tremendas tempestades e de pavorosas apparições.
Concedamos que Portugal, sem cobiçar glorias peregrinas em empresas nunca d'antes nem sonhadas, se aninha no seu recanto do occidente, a deliciar-se como que no seu lar domestico, bem aquecido por um sol vivificador, bem assombrado de suas deliciosas primaveras, bem refrigerado pelas suas auras ameníssimas, bem acobertado pelo seu esplendido ceo meridional Supponhamos que as suas barcas apenas se aventuram á navegação costeira, ou quando muito até aos portos estrangeiros, que lhe demoram mais á mão. Dêmos que se contente com a sua honesta mediania, penduradas na choça ou no castello as armas ainda retinctas no sangue castelhano, com a mão no arado patriarchal, mal cuidando na sua discreta ignorância, quaes terras vão discorrendo ao longo do Atlântico, quaes caminhos vão dar mais brevemente ás regiões da especiaria, quaes potentados ha lá muito ao longe pela Africa e pela Ásia a subjugar pelo terror das armas e pelo prestigio do nome portuguez». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT