sexta-feira, 28 de junho de 2013

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «Quasi logo ao principiar das gloriosas guerras da India se foi a provar fortuna, levando por mestre e capitão tão exemplar soldado como Francisco de Almeida, o qual ia então a governar e adiantar as conquistas portuguezas com titulo de seu primeiro vice-rei»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Fernão de Magalhães appareceu para continuar as façanhas e as glorias marítimas de Colombo, de Solis e Vasco Nunes de Balboa. Seis annos depois que Balboa, diz Alexandre Humboldt, com a espada na mão se mettia nas ondas até ao joelho, e pensava tomar posse do mar do sul em nome de Castella, dois anos depois que a sua cabeça rolava no cepo do verdugo, quando foi a insurreição contra o despotico Pedrarias de Ávila, cruzava Magalhães o mesmo mar do sudoeste ao noroeste n'um espaço de 1850 myriametros. Fernão de Magalhães começou a cursar os exercicios de guerra n'aquelle grande e lustroso theatro onde ceifavam as suas palmas, e os seus loiros, os Almeidas e os Albuquerques. Educado na côrte dos reis, ao serviço da rainha D. Leonor, e depois na de el-rei Manuel I, não era o seu animo varonil e aventureiro para casar-se de boamente com o remansado viver dos paços, onde o ócio é apenas temperado pelas fúteis occupações da etiqueta cortezan. Sentia-se porventura enclausurado o espirito d'aquelle que de nada menos se satisfez, que de navegar extensos mares desconhecidos e legar o seu nome aos fastos mais illustres da moderna geographia.
Quasi logo ao principiar das gloriosas guerras da India se foi a provar fortuna, levando por mestre e capitão tão exemplar soldado como Francisco de Almeida, o qual ia então a governar e adiantar as conquistas portuguezas com titulo de seu primeiro vice-rei. Logo a poucos passos se illustrou por uma acção nobilissima, que arguia ao mesmo tempo a sua galhardia e brios de navegante, e a fidalga generosidade do seu grande coração. Vinha Fernão da India para o reino em certa nau. Aconteceu dar a embarcação nos baixos de Angediva. Não desamparou Fernão de Magalhães o navio, antes com sua prudência e a auctoridade de seu animo esforçado conteve a guarnição até que vieram soccorrel-a n'esse lance. O capitão da nau propunha ao brioso portuguez que n'uma canoa se salvasse. Acceitára Magalhães o alvitre, com tanto que levasse comsigo um seu companheiro, com quem, apesar de menos illustre por nascimento e condição,
tinha tracto de amizade. Oppoz-se o capitão a que na barca se salvasse também o amigo de Magalhães; e Fernão, por um acto de generosa abnegação e de fidalga humanidade, antes quiz preparar-se para morrer, salvando o que devia á obrigação, do que comprar a vida por tão baixo preço de egoismo. Achou-se Fernão de Magalhães na primeira empresa de Malaca com Diogo Lopes Sequeira, e não desmentiu n'esta façanha gloriosa das armas portuguezas, os loiros que, por outras acções, lhe cingiam a fronte juvenil. Em Azamor, saindo uma vez a saltear os moiros, recolheu-se á praça com mais de oitocentos prisioneiros e copioso despojo dos inimigos, custando-lhe a facção uma lançada de que veiu a ficar com alguma deformidade no andar.
Depois de cruzar os mares, de pelejar na Africa e na India, julgou serem bastantes os serviços que prestara, para que el-rei lhe concedesse em galardão um accrescentamento na moradia, que, como fidalgo da sua casa, recebia. Era o rei Manuel I grande remunerador de bons serviços, e mormente dos que eram praticados nas conquistas, em cujo progresso, primeiro que tudo, se empenhava. Mas Manuel era rei, e ainda que monarcha absoluto no governo, sempre havia de ter ilhargas, por cuja conta corresse o afrouxar ou cerrar a bolsa da real munificência. Desde que houve reis e côrtes, houve também logo invejosos e cortezãos, que se adiantavam ao throno para tomar o passo aos beneméritos.
Que muito é pois que o soldado que voltava da Africa e da India, com petição tão justa quão modesta, achasse, ao entrar nos paços, quem fosse segredar a el-rei umas sonhadas malversações, uns senões calumniosos, com que a intriga de aulicos e o ciume de espíritos mesquinhos intenta sempre deslustrar a maior virtude e embaciar o mais peregrino entendimento? Também Cervantes jazeu nos ferros de Castella, por lhe arguirem más contas no officio que servia, e não lhe valeu contra a inveja nem o tiro de arcabuz, com que ficára manco, desde a jornada de Lepanto, nem o ser príncipe dos engenhos hespanhoes do seu tempo e porventura dos séculos vindouros. El-rei Manuel I, em vez do despacho que Fernão de Magalhães sollicitava, ordenou que voltasse á Africa a justificar-se das accusações que lhe faziam.
Soffreu o illustre portuguez o desaire do mau despacho, e a affronta ainda maior de lhe taxarem a honra com suspeitas. E determinando de passar á Africa, d'ali volveu pouco depois trazendo as provas que testemunhavam a falsidade das imputações. Tornou a requerer, o que sem petição lhe devia attribuir a justiça da côrte, se côrte e justiça não andassem desavindas desde tempos immemoriaes. Atravessaram-se os invejosos, e el-rei, cerrando os olhos ao merecimento, dizem que foi premiar pelos feitos de Magalhães os que n'elles tiveram menor parte. Fernão de Magalhães era portuguez, mas antes de ser portuguez era homem, e homem que se sentia interiormente predestinado para altas empresas e glorias immortaes. Podia dissimular então a injuria, indo novamente á India vingar-se, morrendo pelo rei, que assim o tinha aggravado. Fernão de Magalhães, a quem davam realce os espiritos elevados com que o dotou a natureza, entendeu que pátria e rei, que de si o demittiam, negando-lhe o honesto salário de seus serviços, e trocando-lhe o premio pela indifferença, não eram rei nem pátria a quem se devesse fidelidade». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT