Fascinação do Ermo
«(…) Ignorariam a cólera
e maldições que pódem dimanar e dimanam dos prophetas do perdão e do amor. Era por isso que o poeta escondia as suas
terriveis inspirações. Mostruosas para uns, objecto de ludibrio para outros,
n'uma sociedade corrupta em que a virtude era egoista e o vicio incrédulo,
ninguém o escutaria, ou, antes, ninguém o entenderia. A força moral da
nação tinha desapparecido e a força material era apenas um phantasma; porque,
debaixo das lorigas dos cavalleiros e dos saios dos peões das hostes, não havia
senão ânimos gelados, que não podiam aquecer-se ao fogo do santo amor da terra
natal. Com a profunda intelligencia do poeta, o Presbytero contemplava este horrivel espectáculo d'uma nação
cadáver e, longe do bafo empestado das paixões mesquinhas e torpes d'aquella
geração degenerada, ou derramava sobre o pergaminho em torrentes de fél, d'ironia
e de cólera a amargura que lhe trasbordava do coração ou, recordando-se dos tempos
em que era feliz porque tinha
esperança, escrevia em lagrimas os hymnos de amor e de saudade.
No coração de Eurico,
que parecêra morto, porque havia procurado o ermo, o enthusiasmo e a virtude nem
um só instante se tinham todavia apagado; um surdo labor da sua alma
perpetuamente os alimentava. Apenas mudavam as vidas a que se applicavam e
consagravam. O vulgo, na inércia própria do acanhamento do seu espirito, não
podendo alcançar os voos do sonhador, desconhece-os e injuria-os, reputando-os
insensatez, delirio, uma dissipação inexplicável de faculdades preciosas;
incapaz de prender o génio no circulo estreito dos seus interesses, imagina que
o illuminado os despreza e atraiçoa, desamando-o, quando o viu elevar-se e
perder-se n'uma atmosfera inaccessivel á debilidade commum das forças mortaes.
O mundo nunca poderia entender plenamente o affecto que, vibrando-lhe dolorosamente as fibras do coração, arrastou Eurico
para a solidão, quando os outros homens
nos povoados se apinhavam á roda do lar acesso e fallavam das suas mágoas
infantis e dos seus contentamentos d'um instante.
De longa data, Herculano traçara a própria carreira na
contemplação do filho do seu génio. Porque o conflicto da inspiração e do mundo
é e será o mesmo, irreductivel, eternamente, heri et hodie, ipse et in secula.
Se a inspiração veio alojar-se n'um pobre corpo humano, deixae-o, não cuideis
mais do seu destino. E' só o tempo de percorrer a via dolorosa pela qual tem de
seguir seus fados. O termo da jornada está previsto, e será o único que á sua
condição convém, o isolamento e o espaço que a intensidade de irradiação
reclama, provoca e determina nos astros ou nos prophetas, nas parcellas minimas
da luz da matéria ou do espirito. Alexandre
Herculano foi para Val-de-Lobos, não para morrer e sepultar-se ainda
quente das palpitações do seu sangue, mas
para viver inteiramente sua vida; não para deliberada cessação de
actividade, mas para a sua mais perfeita
expansão e mais lidima e bella applicação. Apenas eliminava relações e
cousas que o atormentavam, estorvando-o de se manter continuadamente, face a
face, na presença da aspiração intima.
Entrou no claustro que a
seu modo edificou, naturalmente porque os das antigas communidades estavam prostituidos
e em ruinas. Não lhe regateiára o mundo, atravez das injurias, as lisonjas que concede
á inanidade vaidosa com a mesma insensatez e inconsciente impudor que usa na
calumnia, na inveja e na flagellação do merecimento. Se não foi amortalhado em
trajo de grande do reino, recamado de chaparia, foi porque constantemente
repelliu de si esses symbolos de grandeza emprestada, cobrindo o mais das vezes
uma real mesquinhez. O premio que buscava dos seus combates, aquelle que o
alegraria, se os estranhos lh'o houvessem dado, era a communhão na sua fé, de que
contrariedade alguma o arrancaria, e o fortalecimento nas suas virtudes, em
cuja propagação se lhe figurava uma nova pátria, rejuvenescida para a gloria. E
como essa communhão e essas virtudes não encontrou, senão em raros
companheiros, desventurados como elle, e da outra, da communhão na sordidez em
que os demais folgavam, estava excluido por aversão da sua alma, viu-se expulso
do banquete, e foi alimentar-se ao longe, n'um recanto obscuro e impoluto, do pão
grosseiro e bemdito da singeleza incorruptivel, a guardar o sacrário que Deus
lhe confiara. Cantor da solidão, foi assentar-se
junto do verde céspede do valle, e a paz de Deus consolavao do mundo.
Consolava-o, disse o
poeta candidamente, imaginando carecer de consolo ao deixar o mundo. Não era
assim. Os resplendores enganosos do mundo por que passou, somente para os aborrecer
e desprezar, é que nunca poderiam furtal-o á fascinação do ermo. Na verdade, emquanto
habitou esse mundo de torpezas é que necessitava compensação da violência imposta
ás suas tendências e caracter, e compensação não alcançou.
Céu livre, terra livre,
e livre a mente,
paz intima, e saudade
mas saudade
que não doe, que não
mirra e que consola
são as riquezas do ermo,
onde sorriem
das procellas do mundo
os que o deixaram.
Essas riquezas
abandonara o apostolo, para partilhar com os homens dos bens que no seu peito
abundavam. Os homens desconheceram-nos. Para que pois privar-se de
benefícios preciosos, sem proveito do sacrifício para os desvairados no tropel da ruindade impenitente?!...»
In Jayme de Magalhães Lima, Alexandre Herculano, DD 5369 H4M3,
Typographia F. França Amado, (rua Ferreira Borges, 115) Coimbra, 1910.
Cortesia de Typographia França
Amado, 1910/JDACT