«A melhor maneira de chegar a un entendimento do que é a saudade na obra
do Pascoaes passa(rá) pela análise do que singulariza a sua poesia». In
Luís Miguel Nava, 1994
Introdução
«Belo (1896-97), não sendo a
absoluta estreia poética de Pascoaes,
assim foi tido pelo autor quarenta anos depois, nesse extraordinário documentário
em prosa a cores que é O Homem Universal (1937),
por onde passam num vórtice rodopiante, que muito me faz lembrar o frio vendaval
a seco de uma percepção desencontrada ou, se assim quiserem, irreal, o mosquito de Reichenbach, a onda
electromagnética e o carro de Apolo, e que acabou sendo, numa altura em que o
país vivia a preto e branco, a mais imediata aproximação daquilo que poderia
ter sido uma autobiografia de Pascoaes, se não fosse, em exclusivo e sem
embaraços, uma escrita do pensamento. Apetece sempre perguntar, quando se fala
de biografia de Pascoaes, se este,
com quase setenta anos passados na margem do Tâmega, em simples
exercícios pedestres entre as mesmas sombras e as mesmas luzes, chegou a ter vida,
ou se, por um acaso psicagógico, ele foi apenas uma entidade fantástica,
incorpórea, um ponto estático catalisando, num monumental abanão interior o sangue
e a substância de muitos povos e raças, tantos que até aqueles que ainda não
existiam nem eram para existir, combinações novas ou impossíveis ou tão arcaicas
que se perderam para sempre da máscara do símio, são para contar.
O que Pascoaes publicara
antes de Belo, ainda com o seu nome de
menino, Joaquim, foi um livro chamado Embriões (1895),
de que só parece ter sobrevivido publicamente um exemplar, o da Biblioteca
Pública do Porto, que pertenceu a Sampaio Bruno, imolada que foi a edição no pátio
grande da casa de Pascoaes, virada
ao Marão e às estrelas frias e austrais de Orionte. Pascoaes, com dezasseis ou dezassete anos, aluno tristonho e
tartamudo do Liceu de Amarante, onde reprovou a Português, para que algum dia
se viesse a saber que um Poeta ou mesmo um letrado não são a mesma coisa que um
gramático ou um professor e que a escola tem quase tudo de presídio, deu-se
então muito com Gregório Nazianzeno
Moreira Queirós, seu colega de tirocínio, que por um humilde processo
de encurtamento havia mais tarde de adoptar o nome de Neno Vasco, também ele, a ter em conta uma página de
memórias de Pascoaes (Guerra Junqueiro,
1950), alferes pronto de poetas e, com certeza, aspirante a revolucionário, ele
que se tornaria no mais interessante publicista libertário português da primeira
República, que um Abril já do nosso tempo haveria de, pela mão de um João
Freire, também ele exemplaríssimo, fazer renascer durante quase vinte anos
com a cooperativa editora Sementeira, responsável pela publicação da revista A Ideia (1974-1991).
Salvante esta estória, a das não tanto como isso inesperadas relações de
Pascoaes com Neno Vasco, verdadeira embriologia do pensamento final de Pascoaes, o de A Minha Cartilha (1954),
esse sim sempre imprevisto e desviante, de Embriões nada ficou, a não ser a boa
e leve cinza que para sempre se espalhou nos campos tameganos e que por lá anda
ainda mudada em seiva, silva ou polpa. De Belo, por seu lado, ficou tudo, até o que, por transfusão hoje
despercebida ou então esquecida, passou para a poética de Fernando Pessoa, na altura de bibe e calção em Durban, em primeiro
lugar aquele sorrir e entristecer no mesmo instante, que está num dos mais
comoventes tercetos da primeira parte de Belo,
e que viria de seguida a ser quer a saudade mágica de Pascoaes quer o não ser sendo de Pessoa, outra forma de dizer o nada que é tudo, e em segundo lugar
a surpresa de ver duas almas numa, momento muito dramático da fala de Belo na segunda parte do poema, e que
seria depois a solidão essencial, mas
não cátara, se bem que muito completa, não só da poesia de Pessoa, como de toda a que se lhe
seguiu, num tópico sempre recorrente e sempre presente a que podemos chamar do
hermafrodismo com frente e verso». In Teixeira de Pascoaes, Belo, À Minha Alma,
Sempre, Terra Proibida, introdução de António Cândido Franco, Assírio & Alvim,
Lisboa, 1997, ISBN 972-37-0429-3.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT