«(…) O cadáver de Manuel
Botelho foi lançado à vala comum, n.º 7, do cemitério oriental, Alto de S. João.
E o minguado espólio, se algum remanesceu do pagamento de dívidas, não chegou
para que a educação dos dois órfãos decorresse em colégios de Lisboa, como
seria conveniente, se para isso houvesse recursos pecuniários bastantes. Carolina e Camilo, ficando pobres,
tiveram de ser recebidos em Vila Real pela mesma tia que a favor deles havia
renunciado aos direitos duma hipotética herança. Mas Camilo, rapaz travesso,
fugira de casa de D. Rita Brocas, e viera para Lisboa aventurosamente. Foi,
porém, reenviado a Trás-os-Montes, onde, depois do casamento de sua irmã Carolina com o medico Azevedo,
encontrou mais carinhosa e instrutiva hospedagem na casa deles, em Vilarinho
da Samardan.
Todavia nem D. Rita
ficara de mal com o sobrinho, nem o sobrinho de mal com ela. E assim se explica
que o jovem Camilo a tivesse acompanhado a Friúme, em visita a
Francisco Ribeiro Moreira e sua mulher, genro e filha da mesma D. Rita. Desposando
a meiga Quininha - docemente a
tratava o povo por este diminutivo, Camilo ficou em Friúme, onde
exerceu o cargo de amanuense dum funcionário público, bastante acumulador, e lá permaneceu algum
tempo sob a vigilância e a possível protecção do sogro, que se lisonjeou do
casamento da filha com um rapaz inteligente e de família conhecida em Trás-os-Montes.
Aqui
suspendo a divagação.
Do livro Os amores de Camilo (1899) tomarei, na sua mesma grafia, as
páginas baseadas em informações a que posso dar o nome de versão de Friúme, porque de lá vieram e me foram
obsequiosamente fornecidas por uma família distinta. Reproduzo-as apenas com os
ligeiros retoques que uma futura edição exigia, e que já estavam feitos antes
de iniciadas quaisquer diligências, junto dos parentes de D. Joaquina
Pereira França, para obter a sua versão
de família.
«Friume, pequena povoação,
do concelho de Ribeira de Pena, que ainda hoje tem apenas 85 casas, recosta-se
na margem esquerda do Tâmega e corôa-se no alto por uma extensa rocha, sobre a
qual assenta a capella de S. Gonçalo. A vegetação, pela abundância pinturesca
que a caracteriza, faz lembrar o Minho, já fronteiro. Os campos são cultivados
e arborizados. Os carvalhos, os freixos, os castanheiros e os choupos,
principalmente os choupos, servem de apoio ás vides de enforcado. Por este motivo o povo de Friume designa pelo
nome de uveiras todas as arvores a que se arrima a vinha. A quatrocentos metros
da aldeia deriva plácida a corrente do Tâmega fecundando o solo, regando os campos
e pomares. Camillo, se houvesse de acompanhar sua tia a Lisboa ou ainda ao
Porto, iria contrariado; mas, dentro da província transmontana, passar da
Samardan para Friume, onde a vida rústica era a mesma, se bem que o scenario
fosse mais ameno, não importava sacrifício. Como em todas as aldeias, havia em
Friume um estabelecimento commercial que acumulava vários géneros de negocio;
era simultaneamente mercearia e loja de capella; vendia arroz e botões, alhos e
fitas, bacalhau e lustrina, cominhos e gravatas. Dir-se-ia a tenda do Martins
do Chiado despejada dentro do magasin
do Mattos e Silva. Parecia uma torre de Babel em que cada artigo fallava uma linguagem differente. Mas o proprietário da
loja, Sebastião Martins dos Santos, entendia-se perfeitamente no meio d'esta complicada
Babel. Não confundia nem os lotes nem os géneros do seu estabelecimento; era
como um velho bibliothecario que, por maior que seja a livraria, sabe onde
ha-de ir buscar o tomo que lhe pedem. Elle não era natural de Friume. Tinha
nascido no concelho de Gondomar, onde exercera, como Johnson nos Estados-Unidos,
a profissão de alfaiate. Todavia esse humilde mester não fora indiferente á
illuminação do seu espirito, natulmente sagaz; também como Johnson, Sebastião
dos Santos poderia ufanar-se, no parlamento da sua loja, de ter aprendido,
quando alfaiate, a cortar a direito e a tomar
medidas exactas.
E teria muitas occasiões de o dizer, porque era um sujeito discursivo, que fallava de dentro do balcão como do alto de uma tribuna, illustrando os freguezes, orientando-os sobre o rumo dos negócios públicos, commentando com desassombro e arrogância as zaragatas da junta de paroquia do Salvador. A sua loja fazia lembrar um vasto collector em que fossem desaguar as ramificações literárias, politicas e philosophicas do Grémio, da Havaneza, do Martinho, de S. Bento, da Arcada e do Curso Superior de Lettras. Sebastião dos Santos tinha uma opinião para tudo e para todos. Era um doutor de aldeia, typo aliás vulgar nas nossas províncias, a quem os freguezes e os consulentes jamais recorriam em vão. Aviava tudo quanto lhe pedissem, fosse pimenta para temperar uma lebre, conselho para vencer uma demanda ou receita para curar brotoejas e terçãs. Á noite, quando o movimento commercial da loja abrandava, e elle occupava a sua cáthedra de Pico de Mirandola, era um gosto ouvil-o dissertar sobre as proezas de Carlos Magno, as prophecias do Bandarra, as guerras do tempo do Cerco, a gravitação dos astros e a pesca do bacalhau na Terra Nova. No meio da mais profunda attenção do auditório, só a intervallos perturbada pelo advento de algum freguez retardatário, Sebastião dos Santos prelecionava de omni re scibili et quibusdam aliis, - de todas as coisas e de muitas outras.
A dentro do balcão
escutavam-no com religioso respeito a mulher, Maria Pereira França, e quatro filhas
ainda na infância, a mais velha das quaes se chamava Joaquina e desabrochava
têmpora e linda, cachopa guapa que o leitor terá occasião de conhecer em
escorço. Sebastião dos Santos, transferindo-se de Gondomar a Friume, tomara
logo pé como César: chegou, viu e venceu. Sentia-se com instinctos mais altos
do que os que humildemente se confinavam entre o giz e a tesoira. Uns parentes
que tinha em Friume e eram rendeiros de varias commendas provocaram-no a mudar de
domicilio. O alfaiate desfez-se logo da officina: entroixou e partiu com a
família.
Quando Camillo,
acompanhando a tia Rita, chegou a Friume, a loja de Sebastião dos Santos
florescia como um Printemps local e
como um soalheiro mais brilhante que os da Castanheira e Alhos Vedros no tempo
de Camões. O talento de Camillo
já tinha começado a brotar, numa atmosphera de classicismo, á sombra de padre António
de Azevedo. ' Naquelle tempo o ensino do latim não se havia ainda secularizado:
estava nas mãos do clero. O estudante mais estróina continha-se em respeito, em
terror até, na presença do Padre-Mestre que lhe ensinava Eutropio e Virgílio,
com a profundidade de um poço que alcatruzasse latinidade cristallina». In Alberto
Pimentel, A Primeira Mulher de Camilo, Silêncio Injustificado, PQ 9261C3Z738,
Guimarães & Cª - Editores, Lisboa, 1916.
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