Um só homem possui todo o mundo,
a lua enche de luar todo o mar... In Marânus
Prefácio
«O mundo de Pascoaes
é um mundo poético e visionariamente saturado, o único que goza, como o de Dante
ou de Milton, desta propriedade em língua portuguesa. O que ele tem que
dizer é indizível mas ele di-lo sublimemente, e redi-lo, sem que a sua
sublimidade redundante o diminua, como se a sua inspiração e pressa manasse,
sem metáfora, de uma fonte inesgotável. O que na sua vontade de ruptura o
genial Sá-Carneiro, supunha pouca arte
era música nunca antes tão magistralmente orquestrada com todos os ecos da nossa
lírica e de toda a tradição ocidental, de Homero a Dante, de Milton
a Goethe e Hugo. Por ventura mais do que todas as vozes se ouve
nela a de Camões, renovada na forma
por João
de Deus e, no fundo, por Antero, relido por Nobre
e Junqueiro.
Esta sua familiaridade com a lírica do Ocidente, incluída a do texto bíblico,
está presente no seu génio ao mesmo tempo épico, elegíaco e bucólico, não em
momentos sucessivos mas simultaneamente, e nenhum traço de dependência resiste
ao acto transfigurador da sua visão que melhor será intitular, vidência como justamente o faz Cesariny.
Se da essência da Modernidade é inseparável a dispersão de Sá-Carneiro
ou a fragmentação irremível de
Pessoa, Pascoaes está fora da Modernidade assim concebida. Mas se da
aparência sobretudo formal passarmos a uma ordem de considerações de mais vasto
alcance, não é difícil perceber que a poesia de Pascoaes foi a mais bem sucedida no combate espiritual, a aventura
mais audaciosa da imaginação lusíada
para recriar um mundo novo, uma visão
autónoma da existência e da vida no interior de uma cultura tão interiormente problemática
como a de Pessoa ou Sá-Carneiro.
A maravilhosa boa consciência poética de Pascoaes, a última que conheceu essa
inocência, nada retira à íntima tragicidade da sua visão do mundo, de que a
mitologia da Saudade é, ao mesmo tempo, a expressão e a sublimação ímpar.
Como a de Pessoa, a visão de Pascoaes está suspensa de uma Ausência,
mas de uma ausência sensível, diversa do nada proliferante de que a de Pessoa é o símbolo. Por vezes essa
ausência sensível, aquela que a Noite originária representa, suscita a Pascoaes invocações que parecem gémeas
das que mais tarde inundarão os poemas de Álvaro de Campos e em particular os conhecidos
excertos de Uma Ode à Noite:
Ó Noite do que as noites mais antigas!
Só que Pascoaes é um poeta
que procede ou visiona a realidade às avessas de Pessoa, numa perspectiva redentora: o negativo transfigura-se
sempre em positivo ou á a sua condição. Essa Noite universal, de recorte anteriano, tal como a do autor
dos Sonetos
é ambiguamente noite de horror
e noite criadora e maternal! Esta
função maternante no sentido
de remédio último para a dor da existência, de raiz romântica, também se
encontra em Pessoa mas não é objecto
das litanias criadoras que Pascoaes lhe dedica, fazendo da Noite mãe a origem de tudo:
Ó Noite do que as noites mais antigas!
Manto funéreo e negro, a desdobrar-se
em estrelas, em mundos, e universos,
em nevoeiros de vidas a espalhar-se...
És a sombra genésica e fecunda
de Deus!
Ó via-láctea! Ó sol ardente!
Monstro de luz, abismo de alvorada!
Glória do dia e queda do poente!
Em Pascoaes os contrários
não se opõem e a contradição não exige múltiplos eus para suportar inconciliáveis visões do universo. Tudo é uma só realidade,
misteriosamente a mesma e o seu contrário. É qualquer coisa de diverso das correspondências de Baudelaire,
realidades análogas mas não intrinsecamente solidárias na sua aparente
oposição. O monstro de luz é abismo de alvoradas, é Roma, Jerusalém, como Platão
é Nero. Seria um erro ver
nestas telescopagens metafóricas um qualquer revivalismo das antigas agudezas gongóricas. Essas
associações relâmpagos são visão do mundo, simples expressão de uma realidade
originariamente caótica e paradoxalmente criadora, sombra de Deus».
In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio
& Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT