sábado, 15 de junho de 2013

Tentativa de caracterização. A Revolução de 1383. António Borges Coelho. « Quanto à terra, não faltava terra para agricultar pelo novo modo de produção. Mesmo que todo o solo pagasse renda feudal da terra, o novo modo de produção podia existir e desenvolver-se»

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Divergência e Diálogo
«(…) A esmagadora maioria dos habitantes eram colonos. Certamente. Mas havia uma diferença social considerável entre o colono sediado e integrado na estrutura do concelho e o colono disperso por casais habitados do interior feudal. Não só ao nível da consciência social mas também pela possibilidade maior de reter nas suas mãos os excedentes de produção que levavam ao mercado. Depois, essa minoria, rica dos concelhos que não é menor em número do que a minoria dos senhores feudais desfrutavam já de um poder económico e político-militar determinante. Basta recordar que desde Navas de Tolosa, para lâ da gesta cavaleiresca da Batalha do Salado, o exército do rei de Portugal era predominantemente constituído por estas tropas vilãs que, em vez de receberem soldo para defenderem, pagavam à sua custa o cavalo e as armas e o sustento, deixando o agro e os bens abandonados.
A revolução popular e burguesa, defendida por Armando Castro, surge quase contra o processo no cerrado domínio feudal com que prende os homens do nosso século XIV. Não existia necessidade de substituição do sistema económico-social feudal. Nem necessidade nem força para substituir o modo de produção feudal. Só que outro modo de produção abria caminho. Chamem-lhe os nomes que quiserem. Ele estava vivo e com força suficiente para abrir um largo espaço. Lembro as palavras com que Armando Castro termina o volume XI da sua A Evolução Económica de Portugal:
  • a sua vitória [a da burguesia] não foi um ponto de fractura da História de Portugal, mas conclui-se igualmente que foi aquilo que as determinantes socioeconómicas permitiram que fosse. Tal é a grandeza imorredoura e inexcedível das remotas gerações destes nossos avós.
Não se percebe muito bem esta retórica de grandeza imorredoura e inexcedível numa revolução que não foi fractura, numa revolução presa nas determinantes socioeconómicas feudais, numa revolução que, como pretende provar, se saldou por um reforço da aristocracia senhorial. Na formação económico-social do Portugal do século XIV desenvolvia-se ou não um novo modo de produção, cercado pelas estruturas senhoriais, imbricado no próprio modo de produção feudal? Havia ou não outros parâmetros de existência colectiva? Na formação económica-social de Trezentos vigorava apenas o modo de produção feudal ou coexistia com um novo modo de produção protocapitalista e até com sobrevivências esclavagistas e ainda mais acentuadamente práticas comunitárias?
Modo de produção feudal, modo de produção capitalista, classes, ordens... Não estamos perante um aparelho conceptual datado e testado para as sociedades capitalistas europeias do século XIX, como objectam alguns? Não é este um problema relacionado com a necessidade de nos descartarmos da nossa contemporaneidade? Não podemos descartar-nos dela. Podemos sair ficando, se identificarmos nas palavras e conceitos os conteúdos de hoje, incluindo os mais recentes, os que acabam agora mesmo de se definir, e se identificarmos conjuntamente as palavras e os conteúdos dos conceitos de ontem, daquele ontem que pretendemos caracterizar e compreender. Nesta dupla tentativa procuramos há pouco entender o concelho em Portugal na época de Trezentos.
Mas na sua marcha criativa, os homens que escreveram/pensaram a História inventaram conceitos-ferramenta que procuram abarcar todo o desenvolvimento do processo histórico. Marx e Engels desempenharam um papel de primeiro plano mas não estão sós nem foram eles quem inventou, como eles próprios afirmam, o conceito da luta de classes... Não constitui problema o facto de algumas leis e conceitos que intentam compreender todo o processo histórico terem sido inventadas no século XIX. Problema seria se se revelassem ineficazes e caducos ou se pretendêssemos fechar a sua abertura a novas determinações. Por outro lado, recusar conceitos-ferramenta que abarquem o todo equivaleria a recusar a História como ciência, equivaleria a recusar a possibilidade de compreender o passado.
A verdade, e no caso a verdade histórica, exige uma abordagem totalizante. O pensamento, a câmara fotográfica que vive connosco, pensa analisando, particularizando, mas a compreensão só se atingirá integrando os elementos no todo. Também aqui subsiste uma confusão: a que confunde visão totalizante da história e publicação total dos documentos. Em História Moderna e Contemporânea, nunca uma visão totalizante seria possível porque o número dos documentos é infinito. Por outro lado, épocas há em que, embora possam ser publicados todos os documentos existentes, subsistirão sempre larguíssimas lacunas no campo da informação. Uma visão totalizante da História é aquela que impede, por exemplo, isolar na análise as ideias de uma época e pensá-las de costas voltadas contra a infra-estrutura económica-social e vice-versa.
Houve um novo modo de produção. Caracterizámo-lo em diferentes passagens deste livro e ainda há momentos no corpo deste texto: agricultura voltada predominantemente para o mercado e especializada, agricultura assente, não na medida do trabalho familiar mas na medida do trabalho assalariado permanente e sazonal. Esta agricultura extensiva e intensiva exige terra e capitais para a compra do gado e instrumentos de trabalho, para a compra de rebanhos, para o pagamento em dinheiro e géneros dos salários e para outras despesas com o cultivo. Esses capitais corriam nas mãos dos homens-bons e sobretudo dos cidadãos, os tais honrados pela sua fazenda. Também em alguns ofícios se assistira à desintegração em mestres-donos de ofício e companheiros-assalariados e aprendizes a bem fazer.
Quanto à terra, não faltava terra para agricultar pelo novo modo de produção. Mesmo que todo o solo pagasse renda feudal da terra, o novo modo de produção podia existir e desenvolver-se». In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

Cortesia da Caminho/JDACT