«(…) Leu um pouco o jornal da manhã e fechou a luz da
cabeceira. Pela janela aberta via o luar. Era noite de lua cheia. Suspirou
muito porque era difícil viver só. A solidão a esmagava. Terrível não ter uma
só pessoa para conversar. Era a criatura mais solitária que conhecia. Até Mrs.
Cabot tinha um gato. Ruth Algrave não tinha bicho nenhum: eram bestiais demais
para o seu gosto. Nem tinha televisão. Por dois motivos: faltava-lhe dinheiro e
não queria ficar vendo as imoralidades que apareciam na tela. Na televisão de
Mrs. Cabot vira um homem beijando uma mulher na boca. E isso sem falar no
perigo da transmissão de micróbios. Ah, se pudesse escreveria todos os dias uma
carta de protesto para o Time. Mas não adiantava protestar, ao que
parecia. A falta de vergonha estava no ar. Até já vira um cachorro com uma
cadela. Ficou impressionada. Mas se assim Deus queria, que então assim fosse.
Mas ninguém a tocaria jamais, pensou. Ficava curtindo a solidão.
Até as crianças eram imorais. Evitava-as. E lamentava muito
ter nascido da incontinência de seu pai e de sua mãe. Sentia pudor deles não
terem tido pudor. Como deixava arroz cru na janela, os pombos vinham visitá-la.
Às vezes entravam-lhe no quarto. Eram enviados por Deus. Tão inocentes.
Arrulhando. Mas era meio imoral o arrulho deles, embora menos do que ver mulher
quase nua na televisão. Ia amanhã sem falta escrever uma carta protestando
contra os maus costumes daquela cidade maldita que era Londres. Chegara uma vez
a ver uma fila de viciados junto de uma farmácia, esperando a vez de tomarem
uma aplicação. Como é que a Rainha permitia? Mistério. Escreveria mais uma
carta denunciando a própria Rainha. Escrevia bem, sem erros de gramática e
batia as cartas na máquina do escritório quando tinha um instante de folga. Mr.
Clairson, seu chefe, elogiava muito as suas cartas publicadas. Até dissera que
ela poderia um dia vir a ser escritora. Ficara orgulhosa e agradecera muito.
Estava assim deitada na cama com a sua solidão. O embora. Foi
então que aconteceu. Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não era um
pombo. Teve medo. Falou bem alto: - Quem é? E a resposta veio em forma de
vento: - Eu sou um eu. - Quem é você? perguntou trêmula. - Vim de Saturno para
amar você. - Mas eu não estou vendo ninguém! gritou. - O que importa é que você
está me sentindo. E sentia-o mesmo. Teve um frisson eletrónico. - Como é
que você se chama? perguntou com medo. - Pouco importa. - Mas quero chamar seu
nome! - Chame-me de Ixtlan.
Eles se entendiam em sanscrito. Seu contacto era frio como o
de uma lagartixa, dava-lhe calafrios. Ixtlan tinha sobre a cabeça uma coroa de
cobras entrelaçadas, mansas pelo terror de poder morrer. O manto que cobria o
seu corpo era da mais sofrida cor roxa, era ouro mau e púrpura coagulada. Ele disse: - Tire a roupa. Ela tirou a
camisola. A lua estava enorme dentro do quarto. Ixtlan era branco e pequeno.
Deitou-se ao seu lado na cama de ferro. E passou as mãos pelos seus seios.
Rosas negras. Ela nunca tinha sentido o que sentiu. Era bom demais. Tinha medo
que acabasse. Era como se um aleijado jogasse no ar o seu cajado.
Começou a suspirar e disse para Ixtlan: - Eu te amo, meu amor!
meu grande amor! E - é, sim. Aconteceu. Ela queria que não acabasse nunca. Como
era bom, meu Deus. Tinha vontade de mais, mais e mais. Ela pensava: aceitai-me!
Ou então: Eu me vos oferto. Era o domínio do aqui e agora. Perguntou-lhe: quando é que você volta? - Ixtlan
respondeu: - Na próxima lua cheia. - Mas eu não posso esperar tanto! - É o
jeito, disse ele até friamente. - Vou ficar esperando bebê? - Não. - Mas vou
morrer de saudade de você! Como é que eu faço? - Use-se.
Ele se levantou, beijou-a castamente na testa. E saiu pela
janela. Começou a chorar baixinho. Parecia um triste violino sem arco. A prova
de que tudo isso acontecera mesmo era o lençol manchado de sangue. Guardou-o
sem lavá-lo e poderia mostrá-lo a quem não acreditasse nela. Viu a madrugada
nascer toda cor-de-rosa. No fog os primeiros passarinhos começavam a
pipilar com doçura, ainda sem alvoroço. Deus iluminava seu corpo. Mas, como uma
baronesa Von Blich, nostalgicamente recostada no dossel de cetim de seu leito,
fingiu tocar a campainha para chamar o mordomo que lhe traria café quente,
forte, forte. Ela o amava e ia esperar ardentemente pela nova lua cheia. Não
quis tomar banho para não tirar de si o gosto de Ixtlan. Com ele não fora
pecado e sim uma delícia. Não queria mais escrever nenhuma carta de protesto:
não protestava mais. E não foi à igreja. Era mulher realizada. Tinha marido. Então,
no domingo, na hora do almoço, comeu filet mignon com puré de batata. A
carne sangrenta era óptima. E tomou vinho tinto italiano. Era mesmo
privilegiada. Fora escolhida por um ser de Saturno. Tinha-lhe perguntado por
que a havia escolhido. Ele dissera que era por ela ser ruiva e virgem.
Sentia-se bestial.
Não tinha mais nojo de bichos. Eles que se amassem, era a
melhor coisa do mundo. E ela esperaria por Ixtlan. Ele voltaria: eu
sei, eu sei, eu sei, pensava ela. Também não tinha mais repulsa pelos
casais do Hyde Park. Sabia como eles se sentiam. Como era bom viver. Como era
bom comer carne sangrenta. Como era bom tomar vinho italiano bem adstringente,
meio amargando e restringindo a língua. Era agora imprópria para menores de
dezoito anos. E se deleitava, babava-se de gosto nisso. Como era domingo, foi
ao canto coral. Cantou melhor do que nunca e não se surpreendeu quando a
escolheram para solista. Cantou a sua aleluia. Assim: Aleluia! Aleluia! Aleluia!» In Clarice Lispector, A Via
Crucis do Corpo, Rocco, Rio de Janeiro, 1998, ISBN 85-325-0950-9.
Cortesia de Rocco/JDACT