«Como toda a gente sabe, Galileu tirou a Terra do lugar central que
ocupava no Universo e, ao fazê-lo, deu início a uma abertura indefinida, no
cosmos fechado da Antiguidade e da Idade Média, às novas dimensões do universo
sideral. Como consequência dessa primeira revolução, a Humanidade ancorada no
planeta Terra sentiu-se perdida na imensidão do espaço. Darwin converteu
o Homem
no resultado de uma evolução que, segundo ele, começou com os primeiros passos da
vida na Terra: o Homem sentiu-se então
perdido no novo labirinto do Tempo. E Marx, por fim, substituiu a teoria pela praxis,
a contemplação do mundo pela sua transformação; toda a gente conhece a famosa Tese
XI sobre Feuerbach:
- Até agora, os filósofos dedicaram-se apenas a compreender a realidade; o que importa é transformá-la. À velha marcha da Humanidade para cima opõe-se pois, agora, uma nova marcha da Humanidade para a frente.
É a voz de um padre jovem, que separa as palavras por pausas breves e
termina as frases com cadências de clara origem catalã; uma voz agradável, até mesmo
musical, que não consegue, contudo, desalojar a preocupação comum pelo modo
como vão as coisas, pelo pouco que se vende, pela avalancha de falsificações
verificada nos últimos meses. Já não podemos fiar-nos em nada nem ninguém, e
menos mal se os que compram são estrangeiros, que levam a mercadoria sem ver
para lá das aparências. De modo que na maior parte das lojas se produzem
simultaneamente mudanças de onda e busca de programas mais apropriados para embalar
as meditações sobre a realidade de um Inverno que se apresenta feio. Como, por
exemplo, no estabelecimento de compra e venda da viúva de Peláez, de seu nome
de solteira, Ramona Huerta; para os íntimos, Moncha.
Móveis, espelhos, louça e cristais, porcelanas, quadros. Há também bugigangas
insignificantes: retalhos de tecidos, montes de gravuras, candeeiros de estilos
variados pendentes do tecto. Ao fundo, uma escada que liga a loja ao armazém. A
loja está na penumbra e o armazém às escuras. Junto da porta envidraçada, a
viúva de Peláez embala numa cadeira de baloiço as suas carnes firmes, enfiadas
num vestido preto que as realça, cingida a cintura com um cinto de Santa Rita
cuja ponta esvoaça ao sabor do vento que entra pela porta. A viúva de Peláez agasalha-se
com um xaile de lã peluda e ouve, de olhos fechados, a chuva que bate nas
vidraças. À altura do seu ouvido, em cima de uma consola, o rádio de
transístores canta baixinho uma canção brejeira dos bons velhos tempos. A viúva
de Peláez balança o pé ao compasso da canção, e o coração baloiça-lhe ao
compasso das recordações:
Tomava banho na praia
uma moça angelical,
e as ondas afagavam
sua figura escultural.
A voz dengosa de Sarita Montiel deixa o ar repassado de lubricidades
insinuadas que alcançam ao mesmo tempo a medula de Moncha e esse lugar secreto
da sua alma onde jazem os desejos reprimidos. O peito da viúva de Peláez, Compra e Venda, ergue-se pausadamente,
enquanto ela semicerra os olhos e impele a cadeira de baloiço com leves, embora
enérgicos, empurrõezinhos do pé direito. Se
usar Perfil na sua barrela, minha senhora, montanhas de espuma
dissolvente deixarão a sua roupa suave e fragrante como a pele de uma criança,
como uma pétala de rosa numa manhã de Primavera. Perfil, o rei dos
detergentes... A viúva de Peláez inicia um passeio, em biquíni e sombrinha,
pelas louras, pelas cálidas areias da praia. Longos, ávidos dedos abissais
surgem da rebentação e acariciam as suas formas. A viúva de Peláez aparece a
cores, envolta em espuma dissolvente, na contracapa da Life um coro de nudistas escandinavos canta à sua volta Tapa-me, tapa-me, enquanto ao
longe, cavalgando as ondas, Afrodite Anadiómena tripula um fora-de-borda».
In
Gonzalo Torrente Ballester, Off-Side, Ediciones Destino, 1969, Off-side,
Editorial Caminho, Lisboa, 2000, ISBN 972-21-1371-2.
Cortesia de Caminho/JDACT