O Rival dos Senhores Feudais
«(…) Os traidores, a fim de esconderem o crime, procuraram
comportar-se com o jovem […] com todos os sinais da benevolência e conseguiram
conquistar progressivamente a sua simpatia com falsos gestos de amizade. Pretextando
uma partida de caça, levaram-no à parte mais escondida do bosque e ao ponto
mais inacessível de um lugar desabitado; aí enganaram-no e abandonaram-no aos
lobos e às serpentes, e só deram a conhecer o facto àquele que, enganado, o
tinha ordenado. Ele, então, não tendo ainda esquecido a cólera, corre a casa
irrompe no quarto da cama, lugar que não conhecia e não frequentava, expulsa os
que aí estavam e atira-se furioso sobre a rainha que tinha ficado sozinha,
grávida e já perto do parto, e cobrindo-a de socos e pontapés, perpetra de uma
só vez dois homicídios.
Tendo então convocado em particular os odiosos cúmplices da
sua má atenção, começou a gabar-se e vangloriar-se do seu tríplice delito, como
se tivesse procedido a uma justa vingança. Eles adularam-no com grandes
louvores, como a um homem corajoso e forte, para manterem na estultícia o que
tinham feito estulto. A insídia não descobriu até que começou a ser contada;
mas sendo certo, como se diz, que um crime secreto não se pode esconder durante
muito tempo, acabou por chegar aos ouvidos do povo, e quanto mais baixas eram
as vozes por medo do tirano, tanto mais inaceitável se achava a infâmia
referida em contínuos murmúrios […] Quando o rei notou a corte sombria e em
insólito silêncio, e a cidade, sempre que saía, tão hostil como a corte,
instintivamente receosoi da sua fama, deu-se conta do erro cometido quando já
era demasiado tarde. Foi informado por muitos da inveja que tinha seduzido os
seus traidores e sofreu por isso inconsolavelmente. Então, vingou-se com uma
ira finalmente justa daqueles que tinham concebido e executado o criminoso
plano, e, depois de os ter cegado e castrado, condenando-os assim à noite
perpétua e à abstinência dos prazeres carnais, abandonou-os a uma vida
semelhante à morte.
Esta narrativa extraordinária, escrita pelos anos 1180-1193, pode até ser totalmente
fictícia. Mas a sua atribuição ao rei de Portugal, cujos excessos e violências
impressionavam tanto os cavaleiros de Coimbra, não só, evidentemente, fortuita.
Pelo lado da cólera e da brutalidade aproxima-se do protagonista da Gesta.
Mas exprime também uma imagem semelhante à que era transmitida pelos fidalgos
do Norte de Portugal, isto é de um rei fortemente influenciável pelas intrigas
da corte, cujas acções não agradavam a muitos dos seus súbditos e que tomava
decisões tão insensatas como dar em casamento a um magnat que o
insultava a filha já casada com outro. Qualquer que seja o fundamento histórico
desta narrativa, ela transmite a impressão que do rei de Portugal tinham alguns
membros da corte inglesa que aí ouviam falar dele. O que importa é que esta
impressão não coincidia em nada com a que os cónegos de Santa Cruz deixaram
para a posteridade e que apagou todas as outras.
Três retratos contrastantes
Os cónegos regrantes de Santa Cruz de Coimbra, os cavaleiros
da mesma cidade e os ricos-homens do Norte não tinham, portanto, a mesma
opinião acerca de Afonso Henriques. As suas reacções contrastantes perante o rei
eram suficientemente fortes para transporem as fronteiras de Portugal e
marcaram os relatos que aí se faziam das suas acções. Os segundos e terceiros
estavam longe de partilhar a admiração que os primeiros mostraram, pelas razões
que vimos, para com as virtudes religiosas do monarca. Três meios sociais, três
imagens diferentes, Indício evidente de que a fundação da nacionalidade ou a
política do nosso primeiro rei não obtiveram a unanimidade de opiniões nem o
seguimento pressuroso e entusiástico que tantos autores imaginaram
ingenuamente, em particular, Luís Gonzaga Azevedo.
Indício, ainda, de que, as gerações seguintes, imediatamente
posteriores à de Afonso Henriques, também não havia um acordo fácil a respeito
da sua memória. Prova, finalmente, de que o retrato desenhado pelo notário de
Santa Cruz de Coimbra era tão influenciado pelos esquemas do seu imaginário como
o traçado pelos cavaleiros de Coimbra ou o transmitido pelos nobres de Entre
Douro e Minho. Afinal cada um deles à sua maneira traçava do primeiro rei de
Portugal a imagem que convinha ao seu grupo e que, marcando uma posição face ao
monarca, exprimia uma forma de identificação do próprio grupo, ou que, a partir
delas, influenciava a imaginação de autores longínquos, mais impressionados
pelos aspectos bizarros do que ouviam dizer do que pessoalmente interessados no
seu sentido». In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação
Penélope, Fazer e Desfazer a História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa,
ISSN 0871-7486.
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