«São dez horas da noite, de 27 de Maio de 1803, quando se entreabre uma
janela no número 105 da Rua da Junqueira e um vulto de mulher desce
cuidadosamente para a rua. Movimenta-se com alguma dificuldade, afinal está no seu
quinto mês de gravidez. Próximo, o médico da Real Câmara, João Francisco Oliveira,
está emboscado no escuro. Tem consigo a sua inseparável maleta de médico e um
par de pistolas de pederneira de dois canos. Ainda que o seu alto cargo de
físico-mor dos Reais Exércitos lhe confira alguma imunidade, aqueles quatro
tiros podem sempre contrariar algum excesso de curiosidade dos esbirros do
todo-poderoso e omnipresente Pina Manique, o temido intendente-geral da
polícia. E, se ali as pistolas não lhe forem de algum préstimo, bem as pode ter
à mão para fazer recuar um qualquer pirata argelino. É que o médico está ali
para raptar uma senhora, tirá-la de casa da sua família e fazer-se ao mar. Não
tem, naquela fria noite, outra razão para estar frente à fachada térrea da casa
nobre do Principal Lázaro Leitão Aranha, residência de Gregório de
Eça e Menezes. Vem raptar-lhe a irmã.
Mas quem é esta mulher, que soluça em silêncio e engole o sal das lágrimas, para não acordar as gentes da casa?
Que obscuras voltas do destino a compelem a esta fuga, a esta extrema
humilhação de abandonar a casa do seu
próprio irmão, pela calada da noite, como um ladrão? É uma mulher que
foge para esconder o inesperado fruto de uma paixão inesperada, foge com a alma
tão negra como negra é a sege que a leva à praia de Caxias e negro é o mar que
a conduz à vergonha do degredo. É uma mulher que vai ser impiedosamente
perseguida, condenada e torturada por um crime de paixão. E, contudo, o seu crime
não foi ter amado, mas ter cedido ao amor. Um amor que não podia permitir-se
recusar.
Rotundo, mais baixo que alto, o lábio belfo dando-lhe um eterno ar de
lassidão passiva, João, que é Príncipe
Regente e irá ser rei, o sexto
do seu nome, não era o que se pode dizer um homem atraente. Nem os
luzentes uniformes lhe melhoravam a figura, mesmo aqueles que viria a copiar do
pomposo Junot, embaixador de França e invasor a haver, e que lhe talhava
um alfaiate francês, estabelecido em Lisboa. Restava-lhe a aura de Príncipe
Regente e os louros do poder, para lhe conferirem algum encanto de
sedução. O drama da morte do irmão e Príncipe
Real José (1786), o
promissor delfim que tanto agradava ao poderoso Pombal, seguido da irreversível
loucura da mãe, a rainha D. Maria I, trouxeram-no à ribalta
da governação e aos degraus de um trono que não lhe estava destinado.
Uma noiva de quatro anos, uma esposa de dez
As conveniências da política de reforço das alianças peninsulares
haviam casado o infante João, a 25 de Abril de 1785, jovem de dezoito anos, com uma menina que, nesse preciso dia,
apenas completava dez. Carlota Joaquina de Bourbon,
infanta de Espanha, ainda não tinha quatro anos quando o seu avô, Carlos III, a
destinou em casamento ao infante português. A 8 de Maio, o príncipe foi
conhecer a sua noiva, a légua e meia de Vila Viçosa, permitindo-se-lhe que lhe
falasse, por curtos cinco minutos, à portinhola do coche. O que poderá ter dito um noivo de dezoito anos a uma noiva de dez?
Depois, a pequena princesa, que obviamente não era núbil, ficou à
guarda da rainha D. Maria I até vir a ter idade para consumar o matrimónio, o
que viria a acontecer em Abril de 1790.
Em Junho de 1792, ano em que, por
ter enlouquecido D. Maria I, Carlota Joaquina se torna mulher do Príncipe Regente, com um pé no degrau do trono,
ficaria grávida do seu primeiro filho, D.
Maria Teresa, princesa da Beira, que vem a nascer a 29 de Abril
de 1793. Nestes primeiros anos de
regência do príncipe João, os filhos
de Carlota Joaquina vão nascer
em rajada. Até 1801, praticamente,
ou está grávida ou a ter filhos: são seis
em oito anos e mais três, entre 1802
e 1806, mas... com polémicas, diversas e duvidosas paternidades.
A tornar-se cada vez menos grácil, para não dizer feia, e mais ambiciosa,
Carlota Joaquina vem revelando
que herdara da mãe, Maria Luiza de Parma, mulher do rei Carlos IV de
Espanha e amante notória do poderoso Manuel Godoy, o que alguns
cronistas chamariam, à falta de melhor, o gosto por uma conduta dissoluta, de gostos vis e baixos. Se,
em termos de casamento, o Príncipe Regente não era feliz com a
conflituosa e turbulenta esposa, ainda é, neste dobrar de século, com os seus
trinta e três anos, um homem atento aos apelos da paixão. Foram-se-lhe pousar
os olhos e os desejos numa das damas de sua mulher, D. Eugénia José de
Menezes, que teria os seus vinte e oito anos, por esta altura. A mácula de
uma paixão proibida recai sobre uma neta do 4.º marquês de Marialva, Pedro
de Menezes Noronha Coutinho, celebrado cavaleiro e mestre de equitação.
O marquês era lendário, fora estribeiro-mor de el-rei José I
e, já sexagenário, batia a cavalo as
moitas de Salvaterra de Magos, trazendo à sua frente, em galope furioso, os
javalis corridos à ponta de pampilho, até ficarem ao fácil alcance dos tiros de
sua majestade». In Eduardo Nobre, Paixões Reais, Quimera Editores, 2002, ISBN
972-589-081-7.
Cortesia de Quimera/JDACT