Os Olhos e a Barriga
«A notícia veio nos jornais: um desempregado de 23 anos, pai de dois
filhos, deitou a mão a um dos belos cisnes do lago do Parque de Basílio Teles,
em Matosinhos, torceu-lhe o pescoço e levava-o para casa, para o jantar da
família, quando foi apanhado por um polícia. Os cisnes são, desde tempos
imemoriais, símbolos de beleza e de perfeição e, nessa qualidade, bibelots vivos da decoração de
lagos e jardins. Nos jardins suspensos da Babilónia; nos do shogun, em Kyoto; em Pequim, nos
do imperador; nos lagos imensos do palácio de Kublai Khan, como nos do edénico
jardim inicial, vogaram, vogam eternamente, cisnes. Sob as suas formas
tranquilas e longilíneas se ocultou Zeus para seduzir Leda e desse amor nasceu
Helena, por cuja beleza morreram Aquiles e Heitor, Páris e Ajax, Ifigénia e
Polixena, e caiu para sempre, em chamas, a orgulhosa Tróia.
O infeliz herói desta crónica, todavia, não teve pelo seu lado nem a
complacência dos deuses nem a do polícia de giro. Passeava no Parque de Basílio
Teles quando topou com o cisne e, em vez de lhe dar para qualquer arroubo
helénico, muito prosaicamente representou à sua frente sete ou oito quilos de
carne vogando ociosos e inúteis nas águas paradas. Quem o culpará de, em vez da
memória de Leda e de Zeus ou em vez de ter escrito uma ode, lhe terem ocorrido
coisas mais corriqueiras, como a mulher e os filhos com fome em casa e o
crédito esgotado na mercearia? Vejo Charlot perseguido pelo
garimpeiro de A quimera do oiro de faca e garfo na mão, e, que Apolo me
perdoe, um cisne sempre é mais parecido com um frango do que o homenzinho do
côco e da bengala!
O gesto do desempregado, debruçado, como Narciso, sobre as águas,
agarrando pragmaticamente o bicho pelo pescoço, não fiçará na história da arte;
mas há-de reconhecer-se-lhe dignidade para ficar na história da vida, pelo
menos na da sua miserável e concreta vida de português de Matosinhos, em 1985, mais precisado do efémero útil do
que do eterno agradável.
O Tribunal de Polícia vai agora ser chamado a dirimir na antiga questão
da arte pela arte ou da arte pela vida. E, como é de esperar, optará (muito
concretamente) pela mais abstracta das duas posições, e o homem de 23 anos
aprenderá à própria custa coisas essenciais: que os cisnes são para encher os olhos e não a barriga e que a beleza
não se come. Se a beleza se comesse já o bicho teria acabado em algum vernissage ou em qualquer banquete oficial, não ficava à espera de um desempregado
que passasse...»
In Manuel António Pina, JN, 05de Outubro de 1985
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio & Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT