A luta contra o primado de Toledo
«(…) Viu-se por isso numa situação difícil e, se não
expressamente, pelo menos de facto, contestou o procedimento do seu legado que
havia procurado estabelecer a paz na Península sobre outra base. Que em Roma
havia de esperar dificuldades, previra-o certamente Afonso Henriques. Encarregou por isso de ser portador da sua carta
de enfeudamento o próprio arcebispo de Braga, João Peculiar, que preparou
esta terceira viagem a Roma, também, cuidadosamente. Como já, anteriormente, em
1139, o fizera, viajou desta vez
também na companhia dum legado de Santa Cruz e apresentou documentos
comprovativos dum alargamento das possessões dos dois mosteiros de protecção
papal, Santa Cruz e Grijó. Muniu-se
igualmente do seu privilégio de metropolita com o fim de conseguir a sua
renovação e fez-se acompanhar, para o mesmo fim, de dois diplomas antigos a
favor do bispado de Coimbra. Ligou grande importância a não aparecer isolado,
mas a mostrar que tinha atrás de si a Igreja portuguesa e que compelia os seus
subordinados a cultivar as relações com Roma. Assim recebeu a chancelaria papal
em 30
de Abril e 2 de Maio de 1144 a incumbência de escrever quatro cartas do
privilégio a favor de Braga, Coimbra, Santa Cruz e Grijó; desta forma podia o bispo João esperar dar maior
valor ao seu aparecimento em Roma.
Mais importante porém do que
estes privilégios era naturalmente a resposta epistolar que ao mesmo tempo Afonso Henriques recebia em 1 de
Maio de 1144, carta que é uma obra prima da diplomacia papal (chegou
até nós por meio de dois registos no Registo de Inocêncio IV). Lúcio
II começa aí com louvores à devoção de Afonso Henriques, e, a uma leitura
superficial, toda a carta perece traduzir a aceitação cheia de regozijo do
enfeudamento preparado pelo rei e pelo cardeal Guido. Examinando, porém,
mais de perto, verifica-se que a carta só aceita o que é de maior vantagem para
o papa, mas que evita todas as ligações e todas as consequências políticas. Os
deveres contraídos pelo rei conta-os ele em termos precisos: o hominium
prestado ao papa Inocêncio, a doação do território a S. Pedro e a promessa de
tributo de quatro onças válidas também para os seus sucessores. Mas as
condições que Afonso Henriques
pusera, na sua carta:
- a conservação da sua dignidade, isto é: do título de rei, e total independência do seu território, tanto em questões espirituais como em questões materiais, de todos os poderes além do papa e do legado, são passadas em silêncio;
- igualmente se calou sobre o enfeudamento de Portugal à Santa Sé, contentando-se com a seguinte afirmação: recebemos-te a ti e a teus sucessores entre os Herdeiros do Príncipe Apostólico para que vivais sob a sua bênção e protecção e assim, com a ajuda de Deus, possais entrar no reino do céu.
Dificilmente se poderia ter
expressado, dizendo menos. Era sem dúvida a negação daquilo que o rei de
Portugal imaginara conseguir por meio da doação. Isto exprimia-o Lúcio II,
porém só indirectamente, dirigindo-se a Afonso Henriques, não como a rei, mas
como a dux, pois assim o designava,
tal como antes o fizera Inocêncio II, quando Afonso Henriques ainda não usava o título de rei. A
situação de Portugal devia pois, na, sua opinião, continuar como dantes e a
dependência de Castela continuar também a exprimir-se no próprio título.
O ponto de vista do papa mostrava-se porém ainda mais claramente
no seu modo de proceder para com o arcebispo de Braga: ordenava agora, a este
que se subordinasse ao arcebispo de Toledo como a seu Primaz. A questão do
primado de Toledo descansara uns decénios. É certo que os arcebispos várias vezes
haviam feito confirmar o seu privilégio de Primaz e dirigir as respectivas
encíclicas ao episcopado espanhol. Mas não se exigira, tanto quanto sabemos,
aos restantes arcebispos espanhóis uma subordinação de facto a Toledo. Se agora,
inesperadamente, tal exigência surge, a razão deve ter sido a de se encontrar
em Roma o arcebispo Raimundo de Toledo, ou pelo menos o seu representante.
Mas o motivo principal, evidentemente, era que a impugnação das condições
postas por Afonso Henriques devia
ser expressa claramente também no campo religioso e se deviam combater energicamente
os desejos de independência do príncipe português. Afonso Henriques havia conseguido, de momento, o contrário daquilo
que desejava. Até no privilégio do metropolita a favor do arcebispo bracarense
foi introduzida uma cláusula restritiva, que, cinco anos antes, tinha sido
anulada: até nisto se mostra, o mau
êxito da política portuguesa».
In Carl Erdmann, O Papado e Portugal no primeiro século da História
Portuguesa, Universidade de Coimbra, Instituto Alemão da Universidade de
Coimbra, Coimbra Editora, 1935.
Cortesia de Separata do Boletim do Instituto Alemão/JDACT